A comitiva portuguesa aos Jogos Olímpicos de Tóquio regressou a Portugal com um excelente resultado: uma medalha de ouro, uma de prata, duas de bronze e vários diplomas. Os nossos atletas estão de parabéns. Nossos?! A verdade é que os seus nomes – Pichardo, Mamona, Dongmo, etc. – de portugueses parecem ter pouco…
Pois bem, se essa é a aparência, a verdade é que são portugueses a cem por cento e, sem dúvida, dos melhores. A este propósito, escreveu Rafael Campos Pereira: “Jorge Fonseca ostenta com orgulho a bandeira, chora quando ouve o hino e diz que está em casa sempre que toca o solo português. Auriol Dongmo escolheu ser portuguesa por devoção a Nossa Senhora de Fátima e diz adorar os seus compatriotas e irmãos de Fé. Patrícia Mamona sublinha o seu sangue português e enfatiza o amor à Pátria, enquanto rasga um sorriso e exibe uma bandeira nacional gigante. Pedro Pichardo escolheu ser português, porque Portugal era a liberdade de que precisava para fugir à ditadura sanguinária [de Cuba,] que o encarcerava. Quatro portugueses do mundo. Sem queixas do país que acolheram e que, em troca, os mima e embala.”
Com efeito, Pedro Pichardo, Patrícia Mamona, Jorge Fonseca e Auriol Dongmo têm, em comum, uma mais ou menos remota ascendência africana. Dos medalhados, talvez só Fernando Pimenta seja, como se costuma dizer, português dos quatro costados, porque oriundo da portuguesíssima Ponte de Lima, que antes até de Portugal existir como nação independente, já fazia parte do Condado Portucalense.
Marcelo Rebelo de Sousa disse tudo quando afirmou: “É bom que pensemos que, dos quatro medalhados, três são de origem direta ou indireta africana: um afro-cubano português, uma angolana portuguesa, outro são-tomense português”, referindo-se a Pichardo, Mamona e Fonseca. “Isto mostra que realmente Portugal é grande quando consegue a integração efetiva daqueles que de fora vêm.”
O Chefe de Estado aproveitou para deixar um recado a todos os Portugueses, quer da extrema-direita xenófoba e racista, quer da extrema-esquerda que, com o seu discurso vitimista e a infundada suspeição de que o povo português é racista, também promove o ódio inter-racial. A propósito de Mamadou Ba e de Catarina Martins, dirigente do Bloco de Esquerda, escreveu Campos Pereira, “deve ser difícil andar a proclamar permanentemente que Portugal é um país racista e em seguida vê-lo celebrar com orgulho a sua diversidade. Deve ser difícil constatar que a Auriol veio para Portugal por causa da sua Fé Católica, que o Pedro escolheu Portugal como libertação do comunismo, que o Jorge tem o sonho de ser um polícia português e que a Patrícia é um dos mais belos rostos de Portugal.”
Como muito bem disse o Presidente da República, “quando, de vez em quando, encontramos no nosso país ainda tantos que, aberta ou veladamente, têm na cabeça fantasmas de discriminação étnico-racial, é bom que pensem que, quando se orgulham com medalhas das Olimpíadas, essas medalhas são devidas a todos eles, portugueses hoje, mas de várias origens, de várias etnias” (Observador, 5-8-2021).
Talvez a quem tenha pouco mundo e, sobretudo, escassa cultura e nenhuma humanidade, incomode a origem estrangeira dos medalhados atletas olímpicos portugueses, como se esse facto diminuísse a sua portugalidade. Este preconceito xenófobo e racista pressupõe que o português de pura raça, por assim dizer, não pode ter outro sangue que não seja o nacional.
A Família Real portuguesa, que encarna e representa nove séculos de História nacional, é um bom exemplo de que o conceito de raça pura é tão disparatado como irreal. Com efeito, o nosso primeiro Rei, D. Afonso Henriques, não tinha uma pinga de sangue português: o seu pai, o Conde D. Henrique, era filho de um francês e de uma catalã; e a mãe, D. Teresa, era, pela sua ascendência paterna e materna, castelhana e leonesa.
Também não é verdade que a Família Real portuguesa não tivesse sangue judeu, mouro, ou de outra “infecta nação”, como dantes se dizia. Com efeito, pela Rainha Santa Isabel, todos os monarcas portugueses, seus descendentes, procedem de Maomé! Portanto, se os puristas da raça tivessem esquadrinhado a ascendência dos Reis de Portugal, estes nunca teriam sido membros das Ordens militares que exigiam pureza de sangue, e de que eram, por inerência da sua condição real, grão-mestres!
A Família Real, sendo a mais portuguesa família nacional, é também, paradoxalmente, a mais internacional, pela política de casamentos com membros de outras Casas Reais. Também outras famílias, embora em menor escala, se aliaram a pessoas de outros países. Talvez até se possa dizer que será raro o cidadão português que não tenha, de forma mais ou menos remota, alguma ascendência estrangeira.
Alguns exemplos. O conhecido actor e declamador João Villaret era de ascendência catalã, por ser bisneto, pela varonia, de André Villaret e de sua mulher Josefa Gally, ambos naturais de Gerona, na Catalunha. Manuel Maria Barbosa du Bocage era neto materno de Gilles Hedoix du Bocage, de nacionalidade francesa, de quem herdou o apelido que tornou famoso. É também por via materna que o Professor Francisco Pulido Valente, avô materno do conhecido cronista Vasco Pulido Valente, herdou aquele seu primeiro apelido, originário de El Almendro, Huelva, de onde a sua família emigrou, como muitas outras, por ocasião das invasões francesas.
Um caso paradigmático é o de Sophia de Mello Breyner Andresen. João Henrique Andresen, seu avô paterno, que o era materno de Ruben A., era oriundo, por via paterna, de uma família dinamarquesa. Casou com Johanna Henriette Margareth Lehman, que era filha de um alemão, de Hannover. O avô materno da poetisa, Tomás de Mello Breyner, descendia de uma família austríaca, de que também procedia, mas por uma outra linha, o actor Nicolau Breyner. Por sua vez, a avó materna, Sofia Burnay, era bisneta, pela varonia, de um belga que emigrou para Portugal. Portanto, a portuguesíssima Sophia era também dinamarquesa, alemã, austríaca e belga!
Um interessante estudo do Professor Jorge Buescu, de ascendência luso-romena, concluiu que todos os portugueses contemporâneos descendem, muito provavelmente, de D. Afonso Henriques. Talvez não seja o caso de Pedro Pablo Pichardo, Patrícia Mamona, Auriol Dongmo e Jorge Fonseca, o que em nada afecta a sua cidadania lusitana. Mesmo que os seus descendentes não se possam orgulhar daquela remotíssima ascendência régia, poder-se-ão felicitar pelo facto de estes seus antepassados, não obstante a recente nacionalidade portuguesa, terem sabido honrar a sua actual pátria. Portugal tem boas razões para lhes estar grato, não apenas pelos seus feitos desportivos e pelo seu patriotismo, mas também porque neles se prova a realidade de uma das maiores riquezas da cultura e tradição portuguesas: o nosso humanismo universalista.