A incoerência costuma ser mal vista, por razões que não custam perceber. Gera imprevisibilidade e, por conseguinte, inspira falta de confiança. Ora, se há coisa de que nós precisamos como de pão para a boca é de uma boa dose de confiança nos outros. Não em todos, é claro, nem em idêntico grau. Mas lá vamos precisando, nesta vida arriscada, de confiar desesperadamente em certas pessoas e há casos – o amor é, claro, um deles – em que a perda de confiança provoca uma espécie de terramoto que nos deixa literalmente desorientados. Não sabemos o que está à esquerda e à direita, à frente e atrás, em baixo e em cima, o que é quente e frio ou seco e húmido. Deixamos, numa palavra, de conseguir pensar.

Há poetas que nos merecem gratidão eterna por nos terem dado imagens sensíveis disto e da flutuação da alma daí resultante. Sá de Miranda é indiscutivelmente um deles. E os romances de Eça estão cheios de descrições estupendas de estados de espírito afins, sobretudo no momento em que os maridos descobrem que as suas senhoras se divertem com outros. “Que fazer?”, perguntou-se um dia um revolucionário particularmente desembaraçado. “Que fazer?”, perguntam-se vezes sem conta, nos livros de Eça, maridos embaraçados e aturdidos. Podia-se fazer uma antologia eloquente dessas passagens que bastariam para provar abundantemente o seu génio.

Mas a verdade é que temos de nos habituar a isso e a muito mais. Além de que há casos em que nem se pode sequer falar de perda de confiança propriamente dita. Dito de outra maneira: há casos em que, mesmo sem sermos desconfiados, temos obrigação de ir preparando a futura desilusão, porque sabemos, ou devíamos saber, antecipadamente que a legítima expectativa não será satisfeita. Já que ando em maré de citar escritores, Alexandre O’Neill, que nos percebeu tão bem, vem logo à cabeça:

Prontifica-se
a fazer,

mas fica-se
no dizer.

Pronto! Fica-se…
Que se lhe
há-de
fazer?

Não há português que não perceba isto, que não conheça por dentro e por fora o hábito da desilusão antecipada, da expectativa por regra insatisfeita, do comboio que não parte, do barco que não atravessa o rio, da urgência que hoje é adiada. A vida quase deixa de ser arriscada quando a desilusão apresenta uma tal constância. O risco, apesar de tudo, implica uma certa confiança que as coisas se podem passar como esperamos. Que o barco tem motor, ou velas, ou remos. Mas se a dúvida se instala em permanência sobre a própria existência desses apetrechos, nem se pode falar de risco de ele não navegar. É mais: talvez navegue – vamos ver. O mundo passa a ser uma pura possibilidade sobre a qual todas as conjecturas são igualmente possíveis e, tendencialmente, igualmente inúteis. A incoerência não é já a excepção a temer: é aquilo que, à sua maneira, deve ser. Ai prontifica-se? Vamos lá ver.

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O que é talvez novo por estes dias é que esta redução de tudo a uma pura possibilidade que nada garante ser cumprida é ela vir acompanhada de certezas sanguíneas do poder. O poder não se prontifica: hiper-prontifica-se. A hiper-prontificação alarga o seu escopo na exacta proporção da progressiva dissolução da confiança. O Governo é constituído por verdadeiros atletas da prontificação, cada um com a sua especialidade olímpica. Aeroportos, companhias aéreas, transportes em geral, habitação, saúde, educação, agricultura, habitação – tudo tem o seu desportista sedento de vitórias, agindo verbalmente sob a influência do maravilhoso slogan: ”palavra dada, palavra honrada”. Acontece, no entanto, que as palavras são honradas como passageiras nuvens que atravessam o céu e que não se ligam senão por breves instantes a este nosso esquisito mundo terrestre. A culpa, se calhar, é do vento que as leva. Um maldito vento estrangeiro, que não é nosso e do qual o Governo, é claro, não tem culpa.

Por mim, até desconfio muito de excessivas coerências em matérias éticas e políticas. As éticas absolutamente coerentes conduzem inexoravelmente a consequências contra-intuitivas que não desejaríamos de todo como seu resultado. E o mesmo vale para todos os projectos políticos que assentem numa visão muito limpinha e quadriculada da sociedade: a destruição emerge delas como pãezinhos da padaria. A razão de isto ser assim é de uma simplicidade desarmante: a liberdade humana não se deixa determinar com régua e esquadro, ao contrário do que acontece, pelo menos em parte, com a realidade natural. Aristóteles disse, como de costume, o essencial sobre o assunto: “é próprio de um homem cultivado o não procurar a exactidão para cada género de coisas senão na medida em que a natureza do assunto a admite: é evidentemente quase tão desrazoável aceitar de um matemático raciocínios prováveis como exigir de um orador [de um político, se se quiser] demonstrações propriamente ditas”.

Mas, por mais que uma pessoa pense assim, a verdade é que a opção decidida pela incoerência na relação com a realidade não é aceitável. Viver na antecipação sistemática da frustração das expectativas pode levar a belas meditações sobre os malefícios da vaidade humana, mas não dá jeito nenhum para o dia-a-dia. E andamos a viver pessimamente, por falta de confiança, no dia-a-dia. Ainda por cima a ter de aguentar as tretas da alegre turma dos hiper-prontifcantes, cada vez mais convencidos de que fazer é dizer e que honrar é um modo de falar. Que se lhes há-de fazer? Mandá-los o mais depressa embora. E esperar que quem venha a seguir não lhes siga os procedimentos. Talvez, quem sabe, a expectativa seja satisfeita.