A maioria absoluta do PS é o resultado de vários mistérios. O primeiro a esclarecer é quem forçou a dissolução do parlamento: a «burrice» do PCP e do BE ou, mais provavelmente, a «esperteza» do PR e do PM? É por aí que é preciso começar: pessoalmente, inclino-me para a hipótese segundo a qual António Costa já não queria partilhar o poder nem o «bolo» oferecido pela UE que fará viver o PS e as suas práticas clientelares nos próximos anos.

Outro mistério igualmente relevante é saber por que motivo o PM desistiu subitamente de exigir a «maioria absoluta» e de ameaçar que iria virar as costas ao partido, se não ao próprio país, se não lhe dessem a tal maioria… Será que agora, depois da votação de domingo passado, terão o PR e o PM começado a pensar na Presidência da República a eleger precisamente em 2026? Terá sido todo esse tacticismo que conduziu o país até aqui? Finalmente, é muito estranho que, a partir dessa viragem da campanha eleitoral, nenhuma sondagem voltou a falar da «maioria absoluta», antes pelo contrário.

É exacto que o PSD cometeu um erro grosseiro ao declinar o apoio do moribundo CDS, excepto na Madeira e nos Açores onde a aliança produziu 5 deputados, mas mais surpreendente foi o facto de a última sondagem da campanha eleitoral apontar explicitamente para o «empate técnico» e para os 30 e tal por cento de cada um dos candidatos à vitória. Nem as «margens de erro» chegam para explicar aquilo que veio a passar-se praticamente no dia seguinte!

No mínimo, é sabido que os inquiridos nem sempre dizem a «verdade», à qual efectivamente não estão obrigados por nenhuma lei… mas obedecem à chamada «espiral do silêncio». Tenho com efeito o exemplo de um estudo feito há 20 anos segundo o qual, mesmo depois da votação, eram mais os inquiridos que diziam ter votado no PS do que os votantes que diziam ter votado no partido vencedor, no caso o PSD (ver nota)! É possível, portanto, que muitos inquiridos tenham dado a entender que não iriam votar no PS mas sim noutro partido qualquer ou, mais verosimilmente, que se absteriam…

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Pode acontecer mas é improvável que o erro fosse tão grande. Na verdade, o PSD e a aliança PSD-CDS (Madeira e Açores) tiveram mais 150 mil votos (76 deputados) do que em 2019. O PSD teria feito bem em aceitar o pedido do CDS de se juntarem em todo o território mas Rui Rio não antecipou a «maioria absoluta» do PS: com uma média de 20.000 eleitores para eleger um deputado como sucede com os dois «grandes», os 86.000 votos desbaratados do CDS teriam dado mais 4 deputados à aliança mas que o PS encaixou.

Na verdade, a abstenção no território nacional diminuiu desde as primeiras horas da votação. Possivelmente muitos inquiridos já tinham tomado a decisão de votar mas não o quiseram confiar aos entrevistadores ou algo os convenceu à última da hora. Estamos pois em plena «espiral do silêncio» como acontece com qualquer inquérito. Seja pois por que razão for, houve efectivamente 300 mil eleitores – sem contar com os votantes da «emigração» – que deixaram de se abster.

Além do aumento da participação, houve um enorme movimento de deslocação dos votantes de partido para partido, explicando a posteriori os resultados finais da eleição. O movimento mais importante foi a deslocação dos eleitores do BE e do PCP para o PS perdendo entre eles 350 mil votos e 20 deputados. Quanto ao PAN, perdeu quase metade dos seus eleitores e 3 dos 4 deputados. Mais intrigante é onde foram buscar o CHEGA e a IL acima de 500 mil votos e 20 deputados em conjunto, os quais terão vindo em boa medida da mobilização de novos eleitores. Radicalmente diferentes como são os dois partidos, mostram a evolução do sistema partidário do país.

Se é certo que o PS beneficiou de uma transferência de votos e de deputados muito semelhante às perdas do BE, do PCP e do PAN, já o PSD ganhou o equivalente ao que o CDS desbaratou mas perdeu deputados para o PS, confirmando o processo de redução da proporcionalidade entre votos e eleitos. A prova está no facto de o PS conseguir ganhar a tal maioria absoluta com apenas 42% dos votos, quando Sócrates precisou de 45% e Cavaco Silva 50% no século passado. O facto de a relação de proporcionalidade eleitoral vir a diminuir desde o início do século XXI é a prova da degradação do sistema de representação partidária e, portanto, da qualidade da democracia.

Nota: M. V. Cabral, “Confiança, mobilização e representação política em Portugal”, in M. C. Lobo, P. Magalhães e A. Freire (orgs.), Portugal a Votos – as eleições legislativas de 2002, Lisboa: ICS, pp. 301- 331.