Foi precisamente no dia 11 de Fevereiro de 2013, dia mundial do doente e aniversário da primeira aparição mariana em Lourdes, que o então Papa Bento XVI surpreendeu a Igreja católica e o mundo com o anúncio da sua renúncia ao pontificado romano, por razões de saúde. Era a primeira vez que, na modernidade, tal acontecia. São Paulo VI tinha admitido essa possibilidade que, contudo, não chegou a concretizar. Também nos anos finais do longo pontificado de São João Paulo II se pôs essa hipótese, embora o Papa polaco nunca a tenha admitido, por entender que era sua missão cumprir, até ao fim da sua vida terrena, a função para a qual tinha sido chamado.

Quando um sucessor de Pedro renuncia ao cargo, a sua demissão não carece de aprovação por nenhum órgão eclesial, mas deve ser consciente e livre, como foi a de Bento XVI. A partir da data em que se torna efectiva essa decisão soberana do pontífice romano, declara-se a sede vacante e a Igreja inicia os procedimentos previstos para a eleição de um sucessor. Foi, com efeito, o que aconteceu há dez anos: Joseph Ratzinger, já na inédita qualidade de Papa emérito, deixou o Vaticano e instalou-se provisoriamente em Castel Gandolfo, a residência de verão dos bispos de Roma.

A votação dos cardeais presentes no conclave decide a eleição do Santo Padre, que deve ser aceite pelo próprio. A primeira decisão do eleito é a escolha do seu novo nome. Por deferência com São Pedro, nenhum seu sucessor adoptou este nome. Era tradição que o romano pontífice se chamasse com apenas um vocábulo, seguido do número que lhe correspondesse na ordem dos seus antecessores homónimos. Contudo, o sucessor de Paulo VI, querendo honrar em simultâneo a memória deste seu predecessor e a de João XXIII, optou por um nome composto: João Paulo. Como o seu pontificado foi brevíssimo – apenas um mês! – o seguinte Papa, Karol Wojtyla, optou por dar-lhe continuidade, assumindo o mesmo nome, de que foi o segundo na sequência dos Papas.

Depois de aceite a eleição, os votos são queimados com uma substância que branqueia o respectivo fumo: a ‘fumata bianca’ é o sinal tradicional da eleição de um novo vigário de Cristo! Como por vezes os sinais de fumo – anacronismo que parece evocar os longínquos peles-vermelhas! – não são muito explícitos, está agora previsto que, ao mesmo tempo que a chaminé da Capela Sistina expele o fumo branco, repiquem os sinos da vizinha Basílica de São Pedro. A partir desse momento, a urbe (Roma) e o orbe (o mundo) ficam a saber que “habemus Papam”, isto é, temos Papa! É sempre um momento de grande alegria para todos os católicos, mesmo desconhecendo a sua identidade!

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É costume dizer-se que o eleito pelos cardeais é, sobretudo, escolhido por Deus para a missão que lhe é confiada, porque os eleitores, que entram processionalmente na Capela Sistina, cantando um lindíssimo hino ao Espírito Santo agem sob a sua influência. Como explicou Joseph Ratzinger, a inspiração sobrenatural não impede a liberdade dos eleitores e, por isso, não se pode afirmar que o eleito é necessariamente o escolhido pelo Espírito Santo. Assim se explica que, em dois mil anos de história do papado, não faltaram, mais por via de excepção do que por regra, indignos sucessores de Pedro. Na sua grande maioria, os pontífices romanos foram santos e alguns até morreram mártires, mas também os houve de vida escandalosa, sobretudo no Renascimento. Como é óbvio, seria quase blasfemo supor que esses indignos chefes supremos da Igreja católica eram os candidatos do Espírito Santo, embora tenham sido verdadeiros Papas. Quem quer que o seja, deve ser sempre respeitado e obedecido pelos fiéis – não foi Pedro escolhido directamente por Jesus (cf. Mt 16, 18-19), apesar de o ter negado três vezes (cf. Lc 22, 55-62), e o Mestre o ter chamado Satanás (cf. Mt 16, 23)?! – até porque é infalível, quando ensina matérias de fé e de moral de forma definitiva, ou seja, ex cathedra.

Depois da eleição de Jorge Mário Bergoglio, que escolheu o nome de Francisco, a Igreja católica começou a viver uma década única na sua história moderna: por primeira vez, em muitos anos, havia ‘dois Papas’! Esta singular circunstância, que só terminou com a morte de Bento XVI, foi até aproveitada para produções cinematográficas, mas, em rigor, nunca existiram simultaneamente dois sumos pontífices. Com efeito, embora Bento XVI mantivesse, como emérito, a denominação de Papa, na realidade já o não era, porque o único que se podia como tal intitular era e é Francisco.

Há condições que imprimem carácter, ou seja, são permanentes: o fiel baptizado, crismado, ordenado diácono, presbítero ou bispo, nunca perde essa condição, mesmo que seja excomungado. Mas as funções eclesiais cessam, quando se deixa de exercer o ofício para que se foi nomeado. O ex-pároco, por exemplo, já não é pároco, como o ex-sumo pontífice também já não é Papa.

Por isso, em tese, seria desejável que o ex-vigário de Cristo na terra não fosse designado Papa, nem Papa emérito, porque se sugere a existência de ‘dois Papas’, ou de um papado bicéfalo. Talvez tivesse sido mais conveniente que Bento XVI, depois de ter renunciado, tivesse deixado de ser referido deste modo e retomasse o seu nome civil, que aliás usou, sendo Papa, para assinar textos teológicos pessoais que não fazem parte do seu magistério pontifício. Também teria sido preferível que não se vestisse como Papa, que já não era – à mulher de César não lhe basta ser séria, deve também parecê-lo! – mas como cardeal, que continuava a ser.

Escandalizaram-se não poucos pusilânimes e bastantes fariseus com o que aqui escrevi, há já algumas semanas, a propósito do funeral de Bento XVI, por entenderem que estava a elogiar o Papa emérito, enquanto veladamente criticava o Papa Francisco! A hipocrisia desses comentários é óbvia porque, se se tratasse do funeral do Papa Francisco, a minha opinião não teria sido outra: a questão não era a personalidade de um, ou do outro, mas o respeito devido a quem, seja ele quem for, ocupou a sede de Pedro.

Como aqui agora expressei e não é a primeira vez que o faço, sou da opinião de que Joseph Ratzinger, depois de ter renunciado ao pontificado romano, não deveria ser tratado por Papa emérito, deveria ter retomado o seu nome civil, bem como as vestes cardinalícias. Nesta questão, que certamente não é essencial, estou plenamente de acordo com o Papa Francisco que, quando disse que, se um dia deixar de ser Papa, irá viver para uma residência de sacerdotes jubilados, deu a entender que nunca será Papa emérito.

Se foi infeliz a confusão gerada pela aparência enganosa de dois Papas, pior ainda é, como disse Francisco no seu regresso da viagem apostólica ao Congo e ao Sudão do Sul, que haja partidos na Igreja! Com efeito, a facção dos pró-Bento é teimosamente contra Francisco e, por sua vez, o partido dos pró-Francisco é furiosamente anti-Bento! Eu não sou de partidos, mas de Igreja, que é una, santa, católica e apostólica. Não sou de Ratzinger, contra Bergoglio; nem de Bergoglio, contra Ratzinger: estou muito grato a Bento XVI porque, propondo aos fiéis a comunhão na boca e de joelhos, fomentou a minha devoção eucarística; e estou igualmente muito agradecido ao Papa Francisco por ter introduzido a referência a São José em todas as orações eucarísticas, favorecendo a minha veneração por este tão grande santo!

Graças a Deus, por convicção, formação e opção pessoal, sempre fui, sou e serei pró-Papa, no sentido em que, seja quem for, estou unido à sua pessoa e intenções e obedeço ao seu magistério em matéria de fé e de moral. Mas não sou ‘papista’ porque, em tudo o resto – também nas questões teológicas e canónicas discutíveis – reservo-me o direito de ter uma opinião pessoal. Não obstante os pusilânimes e os fariseus do costume, não abdico da liberdade para a qual Cristo nos libertou (Gl 5, 1).