O último dia do ano 2022 foi também o último da vida terrena de Joseph Ratzinger, o Papa Bento XVI.

Joseph Ratzinger não gozava de boa fama na imprensa. Talvez por ter sido, durante tantos anos, o prefeito da então Congregação para a Doutrina da Fé, era apresentado como o detestado chefe da ex-Inquisição, o odiado ex-Santo Ofício. O facto de ser cognominado ‘pastor alemão’, ou ‘cardeal-panzer’ ou, pior ainda, ‘rottweiler’, não contribuiu para a sua popularidade. A sua atitude reservada e discreta também não favoreceu a sua imagem pública, até porque poucos conheciam os seus textos.

Embora a sua eleição como sucessor de São João Paulo II, de quem foi um dos principais colaboradores, não tenha sido uma surpresa nos ambientes eclesiais, onde era bem conhecida a sua obra, causou, no entanto, algum desconforto nos meios laicos. A razão desta desconfiança talvez se deva ao facto de, dado o seu apreço pela tradição católica, nomeadamente em questões litúrgicas, estar erradamente conotado com os sectores mais conservadores da Igreja. Pode ser que a sua função de garante da ortodoxia católica, que exerceu durante o longo pontificado do seu antecessor, tenha levado a temer que iria instaurar um governo autoritário da Igreja universal.

Contudo, o seu pontificado, embora relativamente breve, sobretudo se comparado com o anterior, foi suficiente para desfazer esses receios e preconceitos. Até os que, acintosamente, tinham considerado a sua eleição para a cátedra de Pedro como o coroar de uma carreira eclesiástica movida pela ambição, tiveram de reconhecer, aquando da sua renúncia ao pontificado romano, a injustiça dessa caluniosa suspeição. Com esse seu surpreendente gesto, Joseph Ratzinger provou que, ao apresentar-se como “um humilde trabalhador na vinha do Senhor”, logo depois da sua eleição papal, não o fez por falsa modéstia, mas com verdadeira e sincera humildade. Por isso, quando entendeu que já não estava em condições de servir a Igreja como Papa, fez o que não teria feito se estivesse apegado ao poder: renunciou ao pontificado romano, para se entregar a uma vida de recolhimento e oração. Desde então, foi o mais firme e fiel apoio do seu sucessor. Não obstante algumas tentativas alheias para contrapor os ‘dois Papas’, Bento XVI nunca se deixou envolver nessas polémicas, por saber que, desde a eleição de Francisco, só este é Papa, porque ele deixou de o ser no momento em que a sua renúncia se tornou efectiva.

Num tempo em que alguns padres, bispos e até cardeais, nomeadamente seus compatriotas, por respeitos humanos, preferem calar, ou mesmo negar a fé e a moral cristãs, Joseph Ratzinger, enquanto cardeal e depois como Papa, teve sempre a coragem de afirmar a fé e a moral da Igreja.

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Dois exemplos a este propósito. Primeiro, condenou a pseudoteologia da libertação, de cunho marxista, então muito em voga na América do Sul e Central, que pretendia reduzir a mensagem cristã a um mero movimento político e social. Em segundo lugar, na instrução Dominus Iesus, de 6-8-2000, recordou que Jesus de Nazaré não pode ser equiparado aos fundadores das demais religiões, nem estas podem ser tidas como caminhos equivalentes de salvação, porque ‘fora da Igreja não há salvação’, o que obviamente não quer dizer que todos os católicos têm o Céu garantido, nem, em sentido contrário, que nenhum não católico se pode salvar.

Escreveu, a este propósito, no seu Testamento espiritual: “Aquilo que antes disse aos meus compatriotas, o digo agora a todos aqueles que na Igreja foram confiados ao meu serviço: permanecei firmes na fé! Não vos deixeis confundir! Com frequência, parece que a ciência – as ciências naturais de um lado e a pesquisa histórica (em particular a exegese da Sagrada Escritura) de outro — seja capaz de oferecer resultados irrefutáveis em contraste com a fé católica. Vi as transformações das ciências naturais desde tempos remotos e pude constatar como, pelo contrário, desapareceram aparentes certezas contra a fé, demonstrando-se ser não ciência, mas interpretações filosóficas somente, em aparência, incumbentes à ciência; assim como, por outro lado, é no diálogo com as ciências naturais que também a fé aprendeu a compreender melhor o limite do alcance de suas afirmações e, portanto, a sua especificidade. São pelo menos 60 anos que acompanho o caminho da Teologia, em especial das Ciências Bíblicas e, com o subseguir-se das várias gerações, vi ruir teses que pareciam inabaláveis, demonstrando-se serem simples hipóteses: a geração liberal (Harnack, Jülicher, etc.), a geração existencialista (Bultmann, etc.), a geração marxista. Vi e vejo como do emaranhado das hipóteses emergiu e emerge novamente a razoabilidade da fé. Jesus Cristo é realmente o caminho, a verdade e a vida — e a Igreja, com todas as suas insuficiências, é realmente o Seu corpo.

Enquanto mestre na fé, há duas principais obras de Bento XVI que o fazem merecedor de uma enorme gratidão de todos os homens, em especial dos cristãos.

A primeira é o Catecismo da Igreja Católica, ordenado e aprovado por São João Paulo II, mas que se deve, sobretudo, ao Cardeal Joseph Ratzinger, que presidiu à comissão que o redigiu. Pela Constituição Apostólica ‘Fidei depositum’, de 11-10-1992, o Papa Wojtyla declarou que este Catecismo é “norma segura para o ensino da fé e por isso instrumento válido e legítimo ao serviço da comunhão eclesial” e pediu “aos pastores da Igreja e aos fiéis que […] o usem assiduamente ao cumprirem a sua missão de anunciar a fé” (nº. 4). O Catecismo mostra, “com exactidão, o conteúdo e a harmoniosa coerência da fé católica” e responde cabalmente “a todos os homens que nos perguntem pela razão da nossa esperança (cf. 1Pd 3, 15)” (nº. 4).

O que foi, para o Concílio de Trento, o Catecismo Romano é agora o Catecismo da Igreja Católica, para o Concílio Vaticano II. Nestes tempos de grande confusão doutrinal, o Catecismo, elaborado pela comissão presidida por Ratzinger, é uma referência obrigatória para os católicos, que têm, neste importantíssimo documento do Magistério da Igreja, a versão completa e actualizada de tudo em que devem crer e viver.

O segundo grande legado de Bento XVI é o seu magistral Jesus de Nazaré, em três volumes. Desde o século XIX, persiste uma atitude de desconstrução histórica de Cristo, promovida por alguns teólogos protestantes, mas também católicos. Este texto, que tem a originalidade de ser assinado com os seus dois nomes – o civil, Joseph Ratzinger, e o eclesial, Bento XVI – não é, ao contrário do Catecismo da Igreja Católica, um texto oficial da Igreja, nem faz parte do seu Magistério. Contudo, é uma resposta valiosíssima a quantos questionaram a historicidade dos Evangelhos canónicos, bem como a do próprio Jesus de Nazaré. Não tendo, a seu favor, a chancela da autoridade pontifícia, tem, no entanto, o valor que lhe advém do facto de ser um trabalho científico de um dos maiores teólogos contemporâneos.

Um homem não vale pelo que vale o seu intelecto, porque mais importa o seu coração. Dizia Santo Agostinho, que Joseph Ratzinger tão bem conhecia e tanto gostava de citar: “Amor meus, pondus meum” (Confissões, XXXIII, 9). Ou seja, o meu peso é o meu amor, porque é a caridade a verdadeira medida do valor de cada ser humano. Com efeito, já São Paulo o tinha dito: “Ainda que eu tenha o dom da profecia e conheça todos os mistérios e toda a ciência, ainda que eu tenha tão grande fé que transporte montanhas, se não tiver amor, nada sou” (1Cr 13, 2).

Confesso que me comovi quando soube que as últimas palavras de Bento XVI, foram: “Senhor, eu amo-Te!”. Mais do que Papa, cardeal, bispo, padre, professor ou teólogo, que foi de forma excelente, Joseph Ratzinger era e é, sobretudo, um homem profundamente apaixonado por Jesus Cristo: é este amor que explica a sua vida e obra e dá a conhecer a verdadeira dimensão do seu extraordinário serviço à Igreja e ao mundo.

Por ocasião da morte de São João Paulo II, um clamor universal exigiu a sua imediata canonização, que o seu sucessor fez bem em só declarar depois de verificados os requisitos exigidos para esse efeito, porque a Igreja não pode ceder à tentação fácil do populismo. Também agora se impõe pedir o pronto reconhecimento da virtude e do saber do seu sucessor na cátedra de Pedro: Santo e Doutor da Igreja, já!