Fui visitar o Cónego Jeremias e desejar-lhe um bom ano. Infelizmente, estava muito abatido com a morte de Bento XVI. Para o animar, recordei-lhe que o Papa emérito não só era já de muita idade como, certamente, estará agora muito melhor.

Disso não tenho dúvidas! Aliás, que tivesse dito que não se estava a preparar para o fim, mas para um encontro, diz tudo do seu amor a Deus, da sua fé na vida eterna e da sua esperança cristã.

– Então, se assim é, porque está tão desanimado?!

Não é por ele, que um dia veremos nos altares e entre os doutores da Igreja! Mas pela forma muito infeliz como o Vaticano se despediu de Bento XVI!

– Refere-se à Missa exequial, na praça de São Pedro?!

Refiro-me a tudo, desde a sua trasladação, sem procissão nem acompanhamento oficial pela Santa Sé, para a basílica de São Pedro, onde entrou por uma porta lateral, até ao seu sepultamento na cripta, sem o Papa! Uma desconsideração à sua memória e uma falta de gratidão a quem o mundo tanto deve e a Igreja muito mais!

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– Porque se procedeu assim?!

Consta que, quando já se previa o seu falecimento, foram dadas ordens para que, quando chegasse a sua última hora, tudo continuasse igual na Santa Sé!

– Se calhar, era esse o desejo do próprio Bento XVI …

Talvez, mas se uma mãe diz que não quer nada no dia do seu aniversário, é óbvio que os bons filhos fazem, na mesma, a festa que merece! Qualquer que fosse a vontade de Bento XVI, o seu funeral deveria ter tido a dignidade que merecia a sua pessoa e, sobretudo, a sua condição de Papa emérito.

– Pode ser que, como já não era Papa, optou-se por uma cerimónia mais singela …

Papa já não era, mas, que eu saiba, ninguém é enterrado sendo Papa, porque todos deixam de o ser no momento da morte e, para o caso, tanto dá que tivesse deixado de o ser na véspera, ou dez anos antes.

Todos os países, quando morre um seu ex-Chefe de Estado, põem a bandeira a meia-haste e declaram luto nacional, mas a Santa Sé não fez isso pelo Papa emérito, por quem nem sequer dobraram, a finados, os sinos de São Pedro! Vários países decretaram luto nacional pela morte de Bento XVI – nomeadamente Portugal, Itália e até a Grã-Bretanha, que não é um país maioritariamente católico – mas não o Vaticano!!

– Aliás, o Papa Francisco não suspendeu a audiência geral da quarta-feira, na véspera do funeral de Bento XVI.

Pois não e, salvo melhor opinião, o Papa Francisco, que teve uma relação bastante próxima com o Papa emérito, a quem visitava com frequência, deveria ter observado um tempo de luto, pelo menos até ao funeral de Bento XVI. Jesus Cristo, quando lhe foi comunicada a morte do seu predecessor, João Baptista, retirou-se, por uns momentos, para longe da multidão (Mt 14, 13).

– Por que se disse que só haveria delegações oficiais da Itália e da Alemanha e que, se outras individualidades quisessem estar presentes, seria a título pessoal?

Essa é outra! Quando um Estado se faz representar, ao mais alto nível, como aconteceu com Portugal e a Bélgica, numas exéquias pontifícias, está a dar um testemunho da maior consideração pelo defunto e pela Igreja. Assim sendo, não faz sentido que a Santa Sé desvalorize essas presenças, como se os representantes desses Estados estivessem lá como meros peregrinos, ou turistas! Felizmente, dada a presença espontânea de vários Chefes de Estado e de Governo, a Secretaria de Estado não teve mais remédio do que lhes dar o tratamento protocolar devido, mas sem os uniformes de gala, como é tradição nas exéquias papais e cardinalícias. De facto, Bento XVI já não era Papa quando morreu, mas nunca deixou de ser cardeal!

– Mas, pelo menos na homilia, o Papa Francisco falou de Bento XVI …

Pois olhe, eu estava de viagem quando a ouvi, em directo, no rádio do carro, e fiquei espantado quando me dei conta que já tinha acabado: foi mais breve do que algumas homilias paroquiais, em dias de semana! Com certeza que os sermões não se medem pela extensão, mas a única referência directa ao Papa emérito foi, de facto, banal: “Bento, fiel amigo do Esposo, que a tua alegria seja perfeita escutando definitivamente e para sempre a sua voz!”. É o que se diz e deseja a qualquer fiel defunto!

É pouco, muito pouco mesmo, sobretudo depois de se ter dito que se estava ali “com o perfume da gratidão e o unguento da esperança para lhe provar, uma vez mais, o amor que não se perde” e se afirmou o propósito de “fazê-lo com a mesma unção, sabedoria, delicadeza e dedicação que ele soube dispensar ao longo dos anos”. Bonitas palavras que, contudo, as obras não confirmaram, porque foi isso que faltou à despedida a Bento XVI: faltou gratidão, faltou amor, faltou unção, faltou sabedoria, faltou delicadeza e dedicação. Que pena e que desolação!

– Mas, nas Missas exequiais, não se devem canonizar os defuntos …

Pois não, mas uma coisa é antecipar um juízo que só a máxima autoridade eclesial pode pronunciar, depois de comprovada a santidade, e outra coisa é não referir os extraordinários serviços prestados por Bento XVI à Igreja! Nem uma palavra para a sua participação no Concílio Vaticano II! Nem uma palavra para a sua obra teológica! Nem uma palavra para os seus vinte anos como prefeito da então Congregação para a Doutrina da Fé! Nem uma palavra para o seu magistério pontifício! Nem uma palavra para a coragem e humildade da sua renúncia, sinal de um evangélico despojamento do poder, para se entregar a uma vida de recolhimento e de oração! Que ingratidão!

– Mas a quem atribui essa falta de consideração pelo Papa emérito?

Isso não é da minha conta! Só comento os factos, mas é evidente que, no seu funeral, o Papa emérito foi desconsiderado pela Santa Sé. Às vezes, prega-se muito a misericórdia e nem a justiça se pratica com os mais próximos!

– Mas não é assim que deseja o Papa, que quer uma Igreja simples e pobre?!

Com certeza que a Igreja deve viver a pobreza e a simplicidade evangélicas, mas pobreza não é miserabilismo, nem a simplicidade é ser simplório. Jesus não poupou elogios a João Baptista, depois do seu martírio: disse que ele “era uma lâmpada ardente e luminosa” (Jo 5, 35); e que foi “mais do que um profeta”, porque “entre os nascidos de mulher não há profeta maior do que João” (Lc 7, 26.28)!

Quando a Igreja exalta os seus filhos pela excelência da sua virtude e saber – e que graça foi, para a Igreja e para o mundo, o Papa Bento XVI! – não cai na autorreferencialidade, mas obedece ao seu Mestre e Senhor que, no programático Sermão da Montanha, disse: “Não se (…) acende a candeia para a colocar debaixo do alqueire, mas sim em cima do candelabro, e assim alumie a todos os que estão em casa. Assim brilhe a vossa luz diante dos homens, de modo que vendo as vossas boas obras, glorifiquem o vosso Pai, que está no Céu” (Mt 5, 14-16).