Em 1942, E.E. Schattschneider escreveu na sua famosa obra Party Government que a democracia representativa deve a sua existência aos partidos políticos. Sem partidos políticos, máquinas burocráticas que permitem a agregação de preferências dos cidadãos, a ligação entre a sociedade civil e o Estado e a selecção de candidatos a cargos políticos, enfrentaríamos um conjunto de paradoxos institucionais que poriam em causa o funcionamento eficiente da democracia representativa.

Mais de 70 anos volvidos sobre o argumentário de Schattschneider, os partidos políticos atravessam uma das maiores crises de legitimidade de sempre, não só em Portugal mas também em todas as sociedades pós-industriais. Vários indicadores como a queda abrupta no número de filiados, a crescente volatilidade eleitoral e, acima de tudo, o forte declínio na confiança dos cidadãos nestas cidadãos ilustram esta crise. Os inquéritos de opinião realizados em Portugal mostram que entre 2003, ano em que 22% dos portugueses revelavam confiar nos partidos, e 2014, a confiança baixou para 11%. Uma descida desta magnitude não pode ser ignorada.

O projecto de revisão constitucional realizado por cinco jovens académicos, entre os quais se conta o autor destas linhas, propõe uma alteração substancial no papel dos partidos no funcionamento do sistema político. Ao prever a possibilidade de movimentos de cidadãos apresentarem listas de deputados à Assembleia da República, o projecto abre a porta ao fim do monopólio partidário no processo eleitoral.

Esta proposta está longe de ser completamente original. De facto, um pouco por toda a Europa, os partidos políticos são apresentados como estando entrincheirados num cartel que, à custa dos recursos institucionais e financeiros da máquina do Estado, se perpetua, impendido a entrada de novas organizações. A abertura aos movimentos cidadãos surgiria, pois, como resposta institucional a um sistema esclerosado, esperando com isso cativar os cidadãos, especialmente os mais jovens ainda nos seus “anos impressionáveis”, para a participação na vida política.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Apesar de teoricamente apelativa, esta proposta comporta um conjunto de perigos institucionais que, a ser aplicada, poriam em causa o bom funcionamento do regime parlamentar. Os partidos políticos têm um conjunto de características que não são passíveis de replicação pelos movimentos de cidadãos. Vejamos três exemplos de como as organizações partidárias suprem necessidades sociais não substituíveis:

1. Nos sistemas políticos europeus existe uma fusão entre o ramo executivo e o legislativo. Os parlamentos são, acima de tudo, câmaras eleitorais que permitem escolher e manter o apoio continuado ao governo. Considerando a natureza da relação entre os dois ramos de poder, alterações substanciais numa parte da equação desequilibrariam o funcionamento global do ecossistema institucional. A abertura das listas à Assembleia da República a listas de cidadãos levaria a uma explosão da representação, fragmentando perigosamente o parlamento. Tal fragmentação contribuiria decisivamente para a instabilidade política, porquanto seria necessário embarcar em processos negociais muito mais complexos para a formação de governos estáveis. Os partidos políticos são necessários para manter um equilíbrio no sistema, moderando a entrada de novos actores.

2. Os partidos políticos transportam consigo uma carga ideológica e uma capacidade de institucionalização que são indispensáveis. Estas instituições criam um conjunto de regras e práticas passadas que tornam o seu comportamento futuro mais previsível, diminuindo a incerteza. Ao mesmo tempo, oferecem aos cidadãos heurísticas cognitivas. Isto é, os cidadãos não necessitam de esforçar-se demasiado para recolher informação para realizar uma decisão eleitoral. Com os movimentos de cidadãos, que, por definição, seriam mais voláteis e cíclicos, os cidadãos teriam de gastar mais recursos cognitivos para poderem realizar uma decisão informada.

3. Por últimos, os movimentos de cidadãos surgiriam intimamente ligados a interesses de grupos sociais particulares, geograficamente circunscritos e, acima de tudo, mono-temáticos. Por exemplo, seria possível que os algarvios se organizassem politicamente apenas e só para defender a concessão de certas benesses para aquela região do país. Trocariam, depois, a obtenção desse benefício particular (chamado pork barrell nos Estados Unidos) por um apoio dado a um qualquer governo na Assembleia da República. Os partidos políticos têm por missão impedir a criação de rendas em favor de certos grupos sociais e/ou regiões, através de um mandato nacional.

Os três pontos anteriores exemplificam os benefícios trazidos pela manutenção do monopólio de candidaturas nos partidos políticos. Todavia, isto não significa que devamos ficar imóveis, sem pensar num conjunto de propostas que, dentro da lógica partidária, possam contribuir para a melhoria da democracia.

No debate promovido pelo Observador na Faculdade de Direito de Lisboa foram elencadas um conjunto de propostas que trariam benefícios claros. Por exemplo, a diminuição do número mínimo de assinaturas para a formação de um partido, ou a possibilidade dos cidadãos entregarem vouchers que seriam depois convertidos em recursos financeiros a entregar a novos partidos, impedindo, assim, que apenas os partidos já existentes consigam obter financiamento público. Estas e outras propostas podem, e devem, ser debatidas numa sociedade aberta e civilizada, sem medos e sem favores.