Somos um povo com muitas opiniões e convicções. Já a fundamentação é coisa menos cuidada ou mesmo ausente. Um tema recorrente na imprensa e nas “redes” é a função pública. Publica-se muito, até anedotas, sobre a ineficiência dos serviços públicos e o seu custo. É assim que os adjectivos para qualificar os “funcionários públicos” não são, por norma, lisonjeiros. Mesmo pessoas expectavelmente com mais responsabilidade, como Luís Todo Bom, manifestam-se de forma totalmente ligeira num artigo no Jornal de Negócios.

O tiro ao funcionário público é assim um desporto praticado por uma parte significativa da população. Eles são globalmente os culpados da maioria dos males do nosso país e da sua ineficiência, mas o pecado original são os salários e as regalias, ambos elevados. É certo que estas críticas, ataques mesmo, não são consubstanciados em números e dados, mas quem quer saber de números quanto se tem opiniões? O facto de a maioria da população nascer às mãos de um funcionário público, aprender a ler e fazer todo o seu percurso académico às mãos de funcionários públicos, ser tratado, quando doente, por funcionários públicos, ser defendido por funcionários públicos e acabar por ser enterrado também por funcionários públicos não leva a que seja feita qualquer reflexão sobre a sua necessidade.

Mesmo hoje, neste processo eleitoral, desta questão só ouvimos banalidades, do liberal “há que reduzir ao mínimo o Estado”, ao comunista “há que criar mais empresas públicas”. Assim, o tempo e o modo como se pode fazer uma reforma na máquina do Estado não é introduzida no processo.

Nas críticas, raramente se atém ao facto de os “funcionários” serem as pessoas mais habilitadas do país. Basta pensar qual a percentagem de licenciados e mestrados e doutorados em todos os graus de ensino, ou os profissionais de saúde. Ou pensar em quem faz investigação, ou quem dá diariamente pareceres sobre a nossa vida corrente, do ordenamento ao comércio ou ao turismo.

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Cada vez mais os concursos para admissão de profissionais para o Estado não são preenchidos. Não é só na saúde, também no direito e em especial no ensino. Parece que as tais carreiras tão apelativas não são afinal assim tão apelativas.

Até 2008 os técnicos do Estado tinham uma carreira, de tipo piramidal, onde iam progredindo de nível com recurso a concursos onde competiam pelo lugar acima, entre iguais. Começavam em “técnico superior de 3ª” e iam subindo até “assessor principal”. A subida até ao topo demorava entre 15 a 25 anos, havendo vagas. Os concursos serviam para garantir que o candidato ao lugar tinha ganho competências no tempo em que preenchera o lugar anterior.

Outra regalia, entretanto retirada, era a do valor da pensão. Quem tivesse cumprido o tempo de serviço total recebia, como pensão, o valor do último vencimento auferido.

Todo este sistema foi retirado e a progressão depende, hoje, apenas, das classificações de serviço. Um licenciado (ou com mestrado) entra na base da carreira, ganhando 998,50 euros que passa a 1205,08 euros (brutos) após o estágio. Se tiver uma classificação de serviço de “bom”, tem direito a 1 ponto por cada ano e por cada 10 pontos (anos) pode subir um nível. Ou seja, em 40 anos (o tempo de serviço necessário para a reforma) sobre quatro níveis, passando a ganhar 2031,43 euros (brutos). Sem telemóvel, carro, seguro de saúde ou qualquer outra regalia. Tem ADSE, mas que paga do seu bolso.

A tabela de vencimentos assume que o vencimento máximo de um técnico superior é de 3374,23 euros. A tabela segue até aos 6369,73 euros, mas nem se percebe para quem. Um médico que consiga chegar ao topo ganha 5078,57 euros, e um general 5026,93 euros (é certo que necessitam de 120 anos para lá chegar, mas a esperança de vida tem vindo, felizmente a subir).

Aquando desta reforma, que passou sem grandes protestos, para quem já tinha 30, 20 anos de serviço sair não era uma decisão fácil. Ainda por cima coincidindo com uma enorme crise financeira global, e assim ficaram. Mas a maioria desses resilientes já se reformou ou está em vias de o fazer.

Nas críticas que são feitas aos funcionários intui-se que se pretendem pessoas (mais) competentes, mais preparadas, mais motivadas. Mas a pergunta de um milhão de euros é como pensam que conseguem contratar pessoas competitivas, produtivas e motivadas? Um exercício académico interessante seria desenvolver teses sobre como motivar funcionários a quem não é possível aumentar o vencimento, dar regalias (carro, telemóvel), garantir carreiras e com todo o tipo de carências nos serviços. Onde não há veículos para ir aos locais. Onde, tirando as carreiras de ensino ou de investigação, a formação que o funcionário faça, mesmo por sua conta, não lhe altera o posicionamento (quem vai fazer e pagar formação numa situação destas?). Onde muitos funcionários levam de casa o aquecedor para não terem frio. Onde usam o seu computador. E em épocas de crise maior até o papel higiénico é levado de casa ou pelo menos racionado. Onde não há verba para formação.

O número de candidatos aos cursos que dão acesso ao ensino está em queda vertiginosa. Os ministros, em particular os das Finanças fingem preocupar-se, mas na prática ficam agradados pelo facto de o orçamento não crescer.

Talvez seja de se pensar globalmente a reforma do Estado. Talvez tenhamos que reduzir o número de disciplinas no ensino para ajustar à oferta de professores. Talvez tenhamos de reduzir a legislação de controle porque não há técnicos que a possam fazer cumprir. Talvez seja de voltar ao sistema de acordos com os privados no ensino e na saúde.

É tempo de os governantes deixarem de tratar os funcionários do Estado, altamente preparados e formados, como proletários.