Primeiro domingo de abril de um dos mais aflitivos anos para a maioria de todos nós, manhã na baixa de Lisboa. O Tejo está cinzento, a circulação é discreta e sem carros, avistam-se alguns caminhantes, atletas, amantes de fotografia, policias e muitos sem abrigo que agora não passam despercebidos mesmo aos olhos do mais distraído que caminha pelas ruas ou espreita à janela. No entanto a generalidade destes seres humanos, tal como nós está em “casa”, a cumprir o período de recolhimento recomendado. A diferença maior é que as paredes são improvisadas de cartão, mantas e sacos que tentam triunfar sobre o vento e o frio que ainda se faz sentir.
Estas pessoas ao continuarem a viver na rua e em bando, além de colocarem em risco a sua própria saúde colocam também em risco a saúde de todos nós. Desprotegidas e com mais necessidades de deslocação para aceder a sanitários públicos escassos e dispersos, a uma refeição que outrora era cedida nas traseiras de restaurantes agora fechados, sem tantas esmolas ou gorjetas pela cooperação na arrumação de carros, estas pessoas estão ainda mais permeáveis à infeção. À medida que o surto de Covid-19 prossegue, os desafios que enfrentam tocam os extremos. Não nos enganemos ou deixemos enganar, a verdade é que mesmo que infetados, para estas pessoas não há quarentena, há sim uma crise desmedida sobreposta a um contexto desumano já existente e que tende a prevalecer.
A câmara de Lisboa, que conta com quase metade das mais de 4000 pessoas a viver na rua ou em centros de abrigo temporário espalhados pelo país segundo dados da OCDE, anunciou recentemente dois novos espaços para acolher pessoas para apoiar sem-abrigo, mas olhando para várias ruas abastadas de sem-abrigo, é pouco. É absurdamente insuficientemente. É verdade que não é natal e que nem todos se forçam a pensar uns minutos nesta realidade, mas como é isto possível num país onde António Costa e a sua equipa afirmam que atuámos cedo e estamos a fazer tudo o que está ao nosso alcance para travar uma pandemia? Questionei hoje um destes desabrigados que fui encontrando, o primeiro em três que me respondeu sem receio ou vergonha de falar e que indicou que não tinha conhecimento destes novos centros de abrigo. Não sei, nem ouvi o outro lado da história, mas a ser verdade não basta apenas criar o abrigo e esperar que os desfavorecidos mais atentos e capazes vão até eles. É preciso que os mecenas, as associações e voluntários (valentes voluntários que alimentam, aquecem e enganam a solidão) que conhecem onde a maioria “vive” identifique esses locais e os transmita às autoridades para que também estas pessoas sejam recolhidas. Na verdade, não é preciso muito, basta olhar para as paragens de autocarro ao longo da avenida da Liberdade, caminhar pelo Rossio, contornar a câmara, passar por Santa Apolónia e estão lá muitos, muitos mesmo.
Bem sei que os desafios são vastos e não existem soluções únicas e consensuais, mas há medidas que não se podem ser procrastinadas quando se trata de covid-19, os números aqui e noutros países confirmam-no. Não basta declarar e alvoroçar que estamos em guerra aos que têm uma casa verdadeira, é preciso agir com todos e para todos! Se existem, e muito bem, autoridades mandatadas a fiscalizar e proibir a mobilidade de muitos dos cidadãos, é necessário suplementar com o inverso. Garantir a mobilidade e mínimo de condições para carenciados, desalojados que coexistam ou não com problemas de saúde física, mental ou de dependência para novos centros de abrigo improvisados, espaços públicos, mas não só. Se não há alternativas avance-se com a requisição civil de hotéis privados agora mais vazios.
Tal como o mundo também a realidade do país vai mudar, é o que se ouve, é o que se vê e é também o que se sente. Mas a mudança apesar de bem-vinda não pode ser apenas a digital, a do teletrabalho, telescola e a do incremento da capacidade futura do SNS. Também não devem ser apenas respostas de emergência. Não olhemos para as árvores, mas sim para a floresta. Aproveitemos a oportunidade para reconsiderar políticas sociais que não estão a funcionar e mudar para um pensamento de longo prazo. A crise atual enaltece ainda mais o trabalho e responsabilidade cívica da NPISA e outras associações e dá razão a Marcelo Rebelo de Sousa que recentemente deu visibilidade ao problema e necessidade de erradicação dos sem-abrigo até 2023. Nesse sentido, tiremos, por favor, partido da velocidade imposta por esta mudança e da interrupção da especulação imobiliária para antecipar projetos como o Housing First e outros tão necessários a esta desumanidade.
Defendo uma sociedade mais inclusiva e equitativa, onde todos têm direito à liberdade, mas onde ninguém deve poder escolher, ou ser obrigado pelo contexto, a viver na rua. Com ou sem pandemias. Mas isso para outras núpcias. Para já, dê-se uma casa, uma verdadeira, a quem não a tem e resolva-se este tema de uma vez por todas. Porque outro desafio maior virá se nada for feito, após período de flexibilização no pagamento das rendas decretado e, havendo mais desemprego, quem hoje tem casa pode passar a ser um dos novos inquilinos das ruas de Lisboa.