Notícias recentes dão conta de que o Governo quer acabar com a reforma obrigatória aos 70 anos na função pública. Várias figuras públicas, a maioria médicos, vieram a público discordar de uma lei que obriga, a quem atinja esta idade, que abandone o serviço público. Os principais argumentos assentam na antiguidade da lei (tem quase um século) e no facto de atualmente, com os avanços da medicina, uma grande parte da população ainda estar de boa saúde aos 70 anos.

O assunto não deverá se discutido com base em casos particulares, já que a lei é sempre geral. É verdade que há casos de ilustres médicos que chegados aos 70 anos ainda estão na posse da maioria das suas capacidades. Contudo, é necessário que os mais velhos se reformem para dar lugar aos mais jovens, permitindo não apenas que hajam novas admissões na função pública, mas possibilitando também que estes possam ocupar lugares de direção, trazendo novas ideias e frescura. Como é sabido, o nosso sistema na função pública favorece que os cargos de direção de serviço sejam frequentemente, na prática, posições vitalícias (pelo menos até aos 70 anos). Por esta razão, a renovação é desejável e saudável, evitando-se, desta forma, vícios, abusos, e a estagnação dos serviços.

No entanto, julgo que o tema deve ser discutido noutra perspetiva. A verdadeira reforma deveria ser efetuada no sentido de se ajustar o trabalho às reais capacidades associadas ao envelhecimento. Não há quem mantenha, na vida profissional, as mesmas capacidades de trabalho aos 60 anos, comparativamente àquelas que tinha, por exemplo, aos 30 ou aos 40 anos. Refiro-me, obviamente, ao envelhecimento normal e saudável. Ora, esta é uma realidade que a legislação atual não reflete e, por este motivo, a lei necessita de ser alterada.

A reforma não deve ser um momento, mas antes um processo gradual que tem de ser preparado com antecedência. A transição para a reforma pode começar ainda na vida ativa, nos últimos anos de carreira, com alterações concretas ao nível profissional. Essas alterações deveriam contemplar uma redução gradual do horário de trabalho (por exemplo, uma hora semanal por cada ano de serviço a partir dos 58 anos) e por um aumento gradual dos dias de férias.

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É preciso criar na sociedade verdadeiramente uma mentalidade de solidariedade intergeracional, através da qual os mais jovens proporcionem aos mais velhos alguma qualidade de vida, numa altura em que estes já deram um longo contributo profissional para a sociedade. Por sua vez, a retribuição dos mais velhos aos mais novos poderá vir de outra forma. Nesta fase da vida, muitos já são avós. A redução de carga horária semanal com a idade, poderá possibilitar que os netos sejam resgatados das creche e jardins de infância mais cedo, dado que muitas vezes passam aí períodos demasiado prolongados, devido à longa jornada de trabalho dos seus pais.

Estas ideias têm como base muitos relatos que tenho escutado ao longo destes anos.   São testemunhos de pessoas que, impotentes pela diminuição do vigor inerente ao normal envelhecimento, se lamentam, por vezes, entre soluços compungidos: «Eu até gostava de continuar a trabalhar, mas tenho 63 anos e já não aguento esta carga de trabalho». Infelizmente, para muitos não lhes resta outra alternativa senão a reforma antecipada com elevadas penalizações, pois não sofrem verdadeiramente de nenhuma doença incapacitante.

O Estado exige cegamente a todos aquilo que muitos com a idade já não conseguem dar, impondo um ritmo de trabalho que se torna gradualmente impossível de suportar, criando deste modo uma desmoralização coletiva. Mas deverão estas pessoas ser penalizadas por uma reforma antecipada? Será este o modelo de sociedade solidária que queremos? Julgo que não.

Portanto, em lugar de, com base em situações excecionais, se discutir a possibilidade de alguns continuarem a trabalhar na função pública para além dos 70 anos de idade, o Governo deve olhar para a maioria. O Governo deve olhar para as pessoas que têm o direito de manter uma vida ativa até à idade da reforma, mas com um horário e funções laborais ajustadas à sua idade, sem que se sintam humilhadas por serem simplesmente pessoas normais. Afinal, na vida real, os super-homens não existem.

Médico Psiquiatra