A complexidade do corpo, a incerteza e a singularidade de cada um de nós, mais ou menos saudáveis, mais ou menos doentes, conduziu à conceção de que a Medicina é uma arte: “A prática da Medicina é uma arte baseada na ciência”, disse Sir William Osler. No entanto e antes de limitarmos “Arte” a um rasgo de inspiração ou a talento inato, importa refletir na origem da palavra: etimologicamente significa aplicar o conhecimento na prática (latim) e no dicionário grego é sinónimo de técnica.
Quando o conhecimento científico era parco permitiu-se a confusão dos conceitos de habilidade com competência, de experiência com efetividade e de tradição com validação. Todos convergindo para uma atuação médica quase artística e indecifrável.
Hoje e cada vez mais, a ciência demonstra-nos como diagnosticar com certeza, que intervenções efetivas implementar e como personalizar os melhores tratamentos. Isto com vista a reduzir a mortalidade, a morbilidade, aumentar a qualidade de vida e, assim, maximizar o valor da Saúde para as pessoas. Por outro lado, ensina-nos também que a melhor Medicina é a prevenção, antes de surgir a doença. Ainda assim persistirá, durante muito tempo, um grau de incerteza e variabilidade na prestação de cuidados.
Discernir, decidir e agir na incerteza é a Arte das equipas médicas. Para isso, a Medicina Baseada na Evidência surge com o objetivo de desenvolver mais fundamentos para a prática médica e reduzir a incerteza na tomada de decisão. É o relato de milhares de casos semelhantes que, se validados metodologicamente e com grandes números, reduzem a incerteza e ultrapassam em grande escala a experiência individual.
A tecnologia em saúde deve focar-se em facilitar esta missão dos profissionais de saúde: dificilmente confiaríamos num piloto de avião que, ao iniciar uma rota, desligasse todos os equipamentos de navegação e nem de um mapa fizesse uso. Mesmo que se justificasse com a sua experiência, sem os sistemas de apoio qualquer um recusaria embarcar nesta viagem certamente passível de erros.
Não obstante, também nos negamos a entrar num avião sem um piloto. As equipas clínicas são e serão o garante da qualidade em Saúde, que distinguem o trigo do joio com o apoio da tecnologia e que seguem as melhores práticas atendendo às especificidades de cada doente.
Numa atualidade de burocracia e descontentamento, de ciência volátil e iterativa, como tirar proveito da inovação e fazer renascer esta Arte da medicina?
Profissionais em atualização contínua
O compromisso com a atualização científica reafirma que a ciência é paradigmática e hipotética. Admite que hoje fazemos o que sabemos ser mais adequado e que amanhã o novo conhecimento nos dará oportunidade de melhorar. Alguns dos exemplos são os rastreios populacionais para cancro da próstata e as indicações para tonsilectomias (excisão das amígdalas), ambos controversos e amplamente gradualmente abandonados.
A melhoria contínua e incremental, informada pela evidência, deve estar na base para as políticas de qualidade em Saúde. Afirmar uma Medicina Baseada na Evidência é um compromisso quotidiano com a atualização, uma fidelização irrefutável com a ciência e uma expressão de respeito ímpar pelo doente, pois é a ele que queremos prestar o melhor cuidado, sem demoras.
Contudo, esta prestação do “estado-da-arte” consome recursos e tem que ser avaliada transversalmente por todo o Sistema de Saúde. Tal não significa necessariamente dispor dos fármacos mais dispendiosos para todas as situações. Nem tudo são medicamentos: pequenas mudanças nos ciclos de cuidados já demonstraram ser efetivas, como a redução do tempo pós-cirúrgico até ao levante do doente ou a administração imediata de antibióticos e fluídos nos casos de sépsis (infecção disseminada). Alterações do processo geram ganhos em Saúde que devem ser quantificados, sob a perspetiva do sistema, dos profissionais e claro, dos seus beneficiários: nós todos enquanto utilizadores.
É certo que este compromisso exige, quotidianamente, um esforço hercúleo de cada profissional. A pesquisa pela evidência é difícil e pede um dispêndio de tempo para profissionais que já vivem vidas laborais frenéticas.
Na variedade de ensaios, guidelines e meta-análises é necessário apoiar a decisão conscientes de que todos os estudos têm qualidade e robustez diferentes. Por vezes, os estudos não são conduzidos para populações semelhantes, simplesmente não são efetivos atendendo aos recursos disponíveis ou até podem não cumprir os padrões éticos, morais e legais vigentes.
Face à realidade volátil do conhecimento científico, a Saúde precisa de estratégias e ferramentas tecnológicas para chegar à melhor evidência científica rapidamente. É necessário que os profissionais de saúde sejam treinados para questionar o saber (e que tenham tempo para o fazer), que as unidades de saúde sejam responsáveis por integrar ciclos de cuidados baseados na evidência, que a liderança mude para suportar este processo e que ferramentas de análise da evidência e de apoio à decisão sejam desenvolvidas e implementadas. Alguns esforços já foram iniciados, mas as soluções mais avançadas ainda estão parcamente implementadas.
Procedimentos para uma Medicina mais segura
Nos anos 60, o médico Avedis Donabedian, pai da Qualidade em Saúde, estabeleceu os seus 3 pilares: a estrutura, o processo e os resultados.
Muita atenção é dada à infraestrutura; basta apreciar os hospitais-escultura, obras dignas de um Pritzker, em construção de norte-a-sul. Certo é que menos atenção é dada ao processo e aos seus intervenientes. Um paradoxo de difícil explicação, visto que os resultados em Saúde são produto dos processos – da organização dos recursos em torno do doente – e das pessoas que os executam. Os ciclos de cuidados deveriam ser trajetórias precisas e com uma estreita margem para desvios, com vista a maximizar a saúde de cada pessoa.
Contudo, as equipas clínicas, separadas pelas paredes dos gabinetes e enclausuradas na ditadura da agenda, estão privadas de pensar holisticamente no doente.
As normas e orientações clínicas vêm de fora, desatualizadas e desajustadas da realidade de cada unidade de saúde, bastando verificar-se a idade média do repertório de normas de orientação clínica. A sua implementação, quando acontece, é feita à revelia das equipas que estão na linha da frente. O resultado esperado é uma prestação de cuidados variável, perigosamente excessiva e sem consenso.
É preciso mais tempo e dedicação para promover a qualidade em Saúde. Um bom exemplo é a iniciativa Choosing Wisely Portugal que reduz as intervenções desnecessárias através da disseminação de informação complementar à prática clínica.
Foco no valor para as Pessoas
“O que me preocupa é que a medicina, empolgada pela ciência, seduzida pela tecnologia e atordoada pela burocracia, apague a sua face humana […]”
João Lobo Antunes, in A Nova Medicina.
A prestação de cuidados deve ser feita para o doente e com vista a que atinja melhor Saúde. Este valor é produto da satisfação e funcionalidade percebida pela pessoa (ausência de dor, capacidade de realiza esforços habituais, etc.) e dos resultados clínicos objectivos (biomarcadores, exames imagiológicos, etc.).
Avaliar a Saúde pela sua produção não permite discernir qualidade: fazer mais, não é fazer melhor; repetir, não é fazer bem. Também, avaliar os cuidados através de resultados binários é fácil (vivo, hospitalizado, etc), mas limitante. Isto porque anos de vida adicionais têm um gradiente de valores diferentes dependendo da qualidade com que são vividos (autonomia, consciência, ausência de dor, em suma, a visão holística de saúde).
Durante esta década tem sido advogada a adoção da Medicina Baseada no Valor, modelo em que os hospitais recebem com base nos resultados para os doentes. Este paradigma reúne adeptos mundiais em conferências e eternas discussões. Mas como podemos esperar que os resultados de um determinado hospital sejam consistentemente melhores, se os modos de atuação são totalmente variáveis entre equipas?
Hoje, na mesma cidade ou grupo hospitalar, uma pessoa com cancro do cólon (intestino grosso) pode ter dois percursos de cuidados diferentes. Como podemos otimizar o valor para as pessoas sem padronização em torno da melhor evidência científica?
O Renascimento
Para o renascimento da Arte da Medicina os profissionais e a tecnologia devem estar simbioticamente alinhados para pensar de que forma é abordada cada doença e libertar tempo para empreenderem Saúde com os seus doentes.
É fundamental facilitar a atualização científica, pensar o doente em contínuo e focar no valor da Saúde para as pessoas. E não precisamos ficar à espera para implementar pequenas mudanças de forma integrada, crítica, fundamentada e com grande impacto.
Médico, fundador da UpHill – Clinical Analytics