Sempre que um texto, discurso ou conversa inaugura com o nome de André Ventura são variadíssimas as reações que os nossos atentos interlocutores experimentam. Há duas, julgo, que merecem especial destaque. De um lado, temos os ferrenhos do partido e da sua maior figura, indivíduos que mal ouvem pronunciado o nome do supremo líder preparam, oleiam e invocam a máquina do armamento retórico, prontos para reagir eficazmente na eventualidade da referência efetuada não ser em tom elogioso. Afiançam que todos quantos não votam em André Ventura besuntam-se e dependem do compadrio e da corrupção do poder instalado e que por esse motivo não podem ser levados a sério. São, segundo muito originalmente tenho ouvido, os “xoninhas” do socialismo.
Temos, depois, os que se posicionam no extremo oposto: não só não acreditam que André Ventura e o seu partido sejam o milagre sebastiânico que dizem ser, como organizam como prioridade das suas vidas não só a resistência às ideias e objetivos do líder do Chega como, em certos casos, uma perseguição aos seus apoiantes. Não raro, optam por uma postura que me parece, digamos, demasiado virulenta, do sangue e da carne, circunstância que tem tanto de compreensível como de contraproducente. Invocam, contra todo e qualquer votante do Chega, uma retórica aberta e que me parece falsamente polida: o fascista que votou no Chega para aqui, o fascista que votou no André Ventura para ali.
Vejamos. Apesar da minha ainda precoce idade não tenho ideia de, nos últimos anos — quiçá nas últimas décadas –, a sociedade civil portuguesa se encontrar tão dividida como hoje. Geram-se ódios e inimigos, dão-se separações até entre indivíduos outrora muitíssimo próximos, manifestações e contra-manifestações, insultos e impropérios bilaterais. Tudo isto em torno da magna figura de André Ventura, que foi, relembremos, escolhido por Deus Nosso Senhor para endireitar este nosso Portugal. Tudo isto acontece com especial força nos jovens, ou, melhor dizendo, entre os mais assíduos frequentadores das redes sociais, sobretudo do Twitter, mítico lugar esse, onde 280 caracteres são espaço mais do que bastante para cada um de nós vociferar apressada e perigosamente a sua aparência de verdade.
Feliz ou infelizmente, não me consigo posicionar nem num nem noutro canto. É certo que André Ventura seria o último candidato em quem votaria; do muito que lhe falta, destaco a ausência de um projeto verdadeiramente coletivo para o país. Lamentavelmente para mim, tenho também muitíssimas dificuldades em compreender o que são os portugueses do bem e mais ainda para perceber quem são os do mal. Recuperando, apesar de deficientemente, um adágio milenar, torna-se fácil compreender que a prioridade do líder do Chega até às próximas legislativas será precisamente a mesma que tem sido até aqui: dividir, na esperança de poder reinar.
Nada do que aqui se diz tem qualquer especial ciência. Não só me parece que Ventura tem conseguido, não modestamente, levar a sua avante, como é mais do que certo que a divisão por si proposta está a ser levada a cabo também por muitos dos que o julgam a maior ameaça para a democracia portuguesa alguma vez surgida. A justificação para esta postura tem residido numa leitura apressada e superficial do paradoxo da tolerância popperiano: afinal, sendo Ventura o intolerante e nós os tolerantes, não precisamos de o tolerar.
Quer gostemos ou não, André Ventura e o seu partido têm, até ver, respeitado as mais elementares regras democráticas: sujeitam-se a eleições e aceitam os resultados. Não me parece colher, também, o argumento de que houve várias experiências totalitárias que começaram por jogar o jogo democrático; os contextos são radicalmente distintos e comparar André Ventura com os grandes ditadores do século XX parece-me, no mínimo, ambicioso.
Se o que sucede é que sentimos um virtuoso chamamento interno para contribuirmos para o aumento da saúde e da estabilidade da nossa democracia, não me parece inteligente a postura de também nós incorrermos na armadilha que logo condenamos e passarmos a estabelecer uma abstrata divisão sanitária entre o bem – os portugueses que não votam em André Ventura – e o mal – os portugueses que votam em André Ventura. Além de ser uma leitura perigosamente redutora, jamais terá o resultado pretendido; é bem provável, segundo temos visto, poder resultar precisamente no contrário.
Relembro-me de Daryl Davis, o músico afro-americano que nos anos 80 se tornou próximo de Roger Kelly, líder do Ku Klux Klan em Maryland. Daryl quis, muito aberta e nobremente, compreender as razões do ódio dos líderes do movimento supremacista em relação aos indivíduos não caucasianos. Notou que não pretendia julgar fosse quem fosse, somente ouvir. Acabou por convencer o à data já seu íntimo amigo Roger a abandonar e a denunciar o KKK. Em 2016, Daryl Davis revelou terem-lhe sido entregues 26 robes, de 26 membros do clã, e que outros 200 membros do grupo se tinham retirado por ação indireta das suas palavras e ações. “Nunca quis converter ninguém; o que aconteceu foi que durante a minha missão, algumas dessas pessoas acabaram naturalmente por se converter a si mesmas”. Uma importante e inteligente lição para os dias que correm.