No início deste mês de fevereiro foi publicado o Democracy Index 2022. Desenvolvido pela revista britânica The Economist, o Democracy Index organiza os sistemas de grande parte (167) dos países do mundo segundo a categorização como Democracias Plenas, Democracias Imperfeitas, Regimes Híbridos e Regimes Autoritários. Se é certo que todos os rankings têm as suas naturais e intrínsecas limitações, e que é complexa a tarefa de se atribuir uma pontuação numérica a um estado de coisas tão rico, múltiplo e diverso como uma democracia, o Democracy Index, pela sua solidez (a par com outros rankings, como o V-Dem ou a Freedom House) constitui um indicador relevante para compreendermos o modo como os vários regimes se vão comportando ano após ano.

No Democracy Index a classificação é feita, numa palavra, através da pontuação obtida em cinco categorias diferentes, resultando, depois, num valor final (entre 0 e 10), valor esse que determina a categorização qualitativa a que aludimos no parágrafo anterior. Segundo a publicação, em 2022, 36,9% da população mundial vivia sob um regime autocrático, 17,9% num regime híbrido, 37,3% numa democracia imperfeita e somente 8% da população numa democracia plena. Apesar desta pequena percentagem, o número de democracias perfeitas aumentou de 21 para 24, com a França, a Espanha e o Chile a juntarem-se ao grupo da frente.

A edição de 2022 do Democracy Index atribui, sem surpresa, especial destaque e relevância ao caso russo-ucraniano e à maneira como a invasão daquele país a este se relaciona com a progressiva e crescente ausência de democraticidade do regime russo (decréscimo de 0,96 pontos entre 2021 e 2022). Além do eixo Ucrânia-Rússia, é dedicada atenção especial à China – em concreto, ao modo como a política COVID-0 e o lockdown agressivo prejudicou ainda mais a classificação daquele regime (1,94 pontos) – bem como os momentos de grande divergência interna – política e civil – nos EUA e no Brasil. De um modo geral, os autores do relatório consideram desapontante a maneira como não se registou um aumento relativamente substancial na avaliação média da qualidade das democracias entre 2021 (média de 5,28 pontos) e 2022 (média de 5,29). Se seria expectável que o progressivo levantamento de algumas restrições às liberdades individuais que vigoraram durante a pandemia pudesse contribuir para um aumento da pontuação, houve, em 2022, vários outros fenómenos de natureza político-civil que determinaram um caminho inverso.

Vamos, agora, ao caso português. Ao contrário do que sucedeu em 2020, em que Portugal – fruto da sua descida, à data, de democracia perfeita para imperfeita – mereceu desenvolvimentos relativamente longos nesse relatório anual, em 2022 constam, somente, três referências em todo o documento, em concreto nas tabelas classificativas.

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A nossa democracia continua a ser considerada uma “democracia com falhas”, conseguindo um total de 7,95 pontos em 10 possíveis, ocupando a 28ª posição no ranking mundial. É certo que nos encontramos perto da pontuação necessária para voltarmos à categoria de democracia plena (8 pontos), mas 2022 torna-se mais um ano em que não estamos no grupo da frente.

Entre as cinco categorias avaliadas, Portugal obtém uma pontuação muito positiva no “Processo eleitoral e pluralismo” (9,58 pontos) e nas “Liberdades Civis” (9,12), uma classificação intermédia em “Funcionamento do Governo” (7,50) e uma pontuação relativamente baixa em “Participação Política” (6,67) e “Cultura Política” (6,88).

É importante perceber, visto isto, quais os referentes avaliativos das dimensões em que a democracia portuguesa obtém resultados menos positivos. A categoria da “Participação Política” – em que a nossa democracia obtém 6,67 pontos – parece apontar, de novo, algumas pistas interessantes relativamente ao modo como os portugueses olham para a atividade política, para os seus representantes e para as próprias dinâmicas Governo-Cidadão. De forma simplificada, o método reside na formulação de algumas interrogações cujas respostas determinam, depois, a pontuação atribuída à referida categoria.

As interrogações, neste subcaso, são as seguintes: a) existe um consenso alargado para a existência de uma democracia estável?; b) qual a percentagem de população que deseja um líder autoritário e que dispense eleições?; c) qual a percentagem da população que desejaria um Estado governado por militares, ou onde estes tivessem uma maior influência?; d) qual a percentagem da população que desejaria um Governo de tecnocratas ou experts?; e) qual a percentagem da população que acredita que a democracia não é eficaz para manter a ordem civil?; f) qual a percentagem da população que acredita que a democracia favorece o desenvolvimento económico?; g) qual o grau de suporte popular da democracia?; h) Existe separação entre Estado e Igreja?

No termo destas interrogações, Portugal alcançou uma pontuação de somente 6,67 pontos, colocando, neste particular, o país relativamente perto da pontuação abaixo da qual os regimes deixam de ser considerados como democráticos (6 pontos), passando a fazer parte da categoria de híbridos. É evidente o que pretendemos significar. A pontuação baixa atribuída nestas dimensões demonstra, novamente, a crescente desconfiança em relação à política e a quem a exerce do modo a que estávamos habituados (v.g., através dos partidos ou estruturas tradicionalmente presentes no sistema democrático). As perguntas supra referidas e, em concreto, as respostas a que no caso português se chegou somente servem de novo meio para comprovar aquilo que já sabíamos. Verifica-se um desgaste crescente em vários eixos que historicamente têm sido decisivos para a composição e manutenção de uma democracia saudável e sólida: a rejeição – ou falta dela – de líderes autoritários, a crença da população na eficácia do regime democrático para manter a ordem civil, a desconfiança em relação aos membros do governo que são tidos como “políticos” (por oposição aos tecnocratas) ou a conservação de uma distância historicamente segura entre os militares e a sua intervenção política.

Recentemente, no fim de 2022, um novo estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos – coordenado por Susana Coroado e Luís de Sousa – volta a reiterar a falta de confiança dos portugueses em relação a quem exerce uma atividade política, abrindo-se dessa forma um flanco para o surgimento e robustecimento da retórica maniqueísta de fenómenos populistas. Miguel Poiares Maduro, nos comentários ao estudo, sublinha a existência de um ciclo vicioso que importa quebrar: os portugueses acreditam cada vez menos nos políticos e os políticos, para tentarem recuperar essa confiança, tentam adotar um conjunto de mecanismos teoricamente virtuosos mas que na prática acabam por fracassar, rompendo-se assim, novamente e de forma paulatinamente mais agressiva, o necessário elo entre representantes e representados. Esta é, efetivamente, uma das falhas da nossa democracia, que importa corrigir.

Pessoalmente, e independentemente do ónus da responsabilidade se encontrar do lado das lideranças eventualmente menos sérias ou da população, que por sua iniciativa dolosa se furta, cada vez mais, do jogo democrático, entendo que é necessário quebrar o ciclo de forma responsável. E só o conseguiremos se agirmos a dois tempos: sermos mais exigentes com quem exerce uma função política, sem termos, contudo, qualquer vergonha ou pejo em apoiar os políticos que consideramos os mais ajustados para cada lugar, em cada momento. Importa lutar e combater a perigosa imagem negativa que junto da sociedade civil se vai desenvolvendo em relação às instituições democráticas e aos representantes políticos.