A tese é a seguinte: o wokismo seria uma criação dos anti-woke, uma gente que se acantona na direita ou na extrema-direita; os woke propriamente ditos — a existirem — seriam praticamente invisíveis e nunca teriam assumido essa ideologia. Esta tese foi recentemente defendida por António Guerreiro, colunista do Público. Trata-se de uma tese falsa que, todavia, nos dias que correm, é muito repetida, muito repisada, e que corresponde a uma jogada táctica no contexto das guerras culturais, como mostrarei no fim deste artigo. Para já vejamos a tese de António Guerreiro mais de perto:

Tendo por base a imprensa nacional e estrangeira, Guerreiro afirma que “nos últimos tempos” as “colunas de opinião contra o fenómeno woke” são “abundantes”, sendo, em contrapartida “muito escassos ou quase inexistentes” os artigos “a defender a atitude woke”. Reconhecendo que a sua janela de observação é estreita e limitada, o colunista sublinha que ela permite, ainda assim, detectar que “os pró-woke são raros e quase não se dá por eles, enquanto os anti-woke são legião.” Para António Guerreiro são estes que, em plena cruzada ideológica, utilizam “todos os meios ao seu alcance e exultam sempre que o campo inimigo lhes fornece o mínimo pretexto (e isso, infelizmente, não é raro acontecer) para prosseguirem a sua ofensiva, fazendo de conta que são eles as vítimas, impotentes e desarmados face a um inimigo que usa sem escrúpulos as novas armas de destruição da cultura e dos velhos hábitos da nossa civilização.” Nessa cruzada, os anti-woke teriam criado “um inimigo fantasmático que tem muito pouco de real e muito de caricatura.”

António Guerreiro defende que o wokismo, enquanto ideologia e movimento político, “existe apenas na  linguagem dos seus críticos” pois “nunca foi reivindicado pelos ‘activistas’ e seus simpatizantes”. Ora, essa afirmação não é sustentável nem prova coisa nenhuma. Muitas vezes, ao longo da História, a designação (e, até, a caracterização) das ideologias não foi obra dos seus partidários e difusores, mas dos que se lhes opunham ou dos neutros. O escravismo ou o toleracionismo — isto é, o reconhecimento da iniquidade do sistema escravista, ainda que aceitando a sua razão de ser nas condições do mundo — não eram assim designados pelos que defendiam essas posições ideológicas, mas pelos seus adversários — os abolicionistas — ou pelos actuais historiadores. Algo de equivalente se pode, por exemplo, dizer a respeito de várias heresias. Ou seja, o facto de a designação de uma ideologia não provir dos (ou não ser assumida pelos) seus aderentes e defensores não significa, longe disso, que essa ideologia não exista e que não seja relevante.

Outra parcela da tese de António Guerreiro que também não se sustenta é a ideia de que o wokismo não seria visível. Guerreiro afirma, até, que não sabe quem são os woke; sabe apenas quem são os “que se apropriaram (dessa palavra) para a transformar num modelo negativo”. Ora, há aqui um erro de paralaxe e uma estranha miopia. Porquê? Desde logo porque o colunista está, assumidamente, a olhar o fenómeno woke no que designa por “últimos tempos” e apenas nas “colunas de opinião”. Ou seja, está a observá-lo por um óculo estreitíssimo e numa era de maré baixa. De facto, “nos últimos tempos” o wokismo está menos evidente, por simples jogada táctica, como, aliás, já assinalei por diversas vezes e como veremos no fim deste artigo. Se António Guerreiro tivesse observado o fenómeno em 2017 ou 2018 teria dele um retrato muito mais nítido e pujante.

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Ainda assim, e mesmo em fase mais discreta, o wokismo que existe agora é suficientemente audível e visível. António Guerreiro terá ouvido Luca Argel, cantor nascido no Rio de Janeiro e radicado há dez anos em Portugal, exigir, cantando, que Marcelo Rebelo de Sousa peça desculpas pelo envolvimento de Portugal na escravatura? Terá lido a entrevista em que o referido cantor explica melhor esse pedido e ideias conexas?

Não é verdade que os woke não se exprimam no espaço público. Há centenas de Luca Argel, sejam eles políticos de extrema-esquerda, colunistas de jornal ou, simplesmente, gente que se manifesta nas redes sociais, “a nova rua”, politicamente falando, como Sérgio Sousa Pinto muito adequadamente lhes chamou. Aparentemente, António Guerreiro não tem prestado atenção a essa “nova rua”. Se andasse pelo Facebook e outras redes sociais encontraria wokes a cada esquina e vê-los-ia verbalizar quotidianamente a sua ideologia. Mas ainda que seja sobretudo nas redes sociais que o wokismo medra e se expressa, ele também se encontra assiduamente nos jornais. Focando-me apenas na imprensa e na área que conheço melhor — os debates sobre escravatura —, posso indicar muitas dezenas de textos woke a António Guerreiro. E que querem os woke nesta tal área que conheço melhor? Querem julgar (e condenar) o passado com os olhos, isto é, com os conceitos e juízos morais, do presente; querem pedidos de desculpa oficiais por antigas injustiças e violências; querem reparações materiais ou simbólicas pelo envolvimento de Portugal na escravatura; querem — ou quiseram — fomentar um grande debate público, fazendo passar a falsa ideia de que o assunto nunca antes se debatera, para tentar impor a sua versão dos acontecimentos; querem alterar o ensino da disciplina de História de acordo com essa versão; etc.

E não se pense que não assumem a camisola que vestem. Há cerca de um mês, Luísa Semedo, uma pessoa claramente woke que é colunista do Público, escrevia no Facebook, em comentário a outro membro da crença que se queixava de que um artigo meu o fazia bocejar, o seguinte: “não bocejes, mantém-te acordado, que é isso que ele quer, que adormeças! (…) #StayWoke”. Ao invés do que António Guerreiro tenta provar, o wokismo existe e os woke são, mesmo em fase de relativo retraimento, muito numerosos e visíveis. O wokismo não é um fantasma criado pela gente de direita. Tem existência e substância bem reais.

Dito isto, o aspecto mais interessante do artigo de António Guerreiro é o contexto em que surge. Há actualmente um claro movimento de negação, disfarce ou atenuação do fenómeno woke, que parece partir dos seus próprios mentores e que é particularmente evidente no berço que o viu nascer e crescer, isto é, nos Estados Unidos e no Reino Unido. Quem ler jornais de esquerda britânicos ou norte-americanos, os mesmos jornais que muito promoveram o wokismo, dá-se conta de que, ultimamente, eles concedem espaço a opinadores que negam a existência — ou, pelo menos, a importância — do fenómeno que designam por “wokeness” ou “wokeism” e que o descrevem como uma criação mais ou menos alucinada e obsessiva dos conservadores e da extrema-direita (ver, por exemplo, aqui ou aqui).

Voluntária ou involuntariamente, António Guerreiro alinhou nesse movimento, movimento que é, aliás, fácil de explicar. O wokismo tem dado azo a repetidos exageros, muitos deles risíveis. Pense-se, por exemplo, na alteração dos livros de Roald Dahl de modo a que palavras mais neutras ou menos pejorativas substituam “gordo”, “feio” e muitas outras. António Guerreiro reconhece essa parvoíce, mas classifica-a mais como manobra económica da editora do que como um disparatado resultado do wokismo e do “politicamente correcto”. Mas não tem razão. O caso Roald Dahl é, na área das “correcções” woke da literatura, apenas o mais recente de vários outros (os de Mark Twain, Harper Lee, etc.). O que sucede — e que os woke mais perspicazes e racionais já perceberam — é que essa acumulação de casos provoca, tanto na direita como na esquerda moderada, uma reacção de chacota e de rejeição. E, perante essa reacção, surgem a atrapalhação e os lamentos de vários woke que, sentindo-se a perder o pé ou sem argumentos, e não querendo ficar conotados com as óbvias parvoíces a que o wokismo extremado conduz, recorrem à táctica de fingir que nunca existiram. O embaraço é tanto que, em sentido figurado, se metem no primeiro buraco que conseguem encontrar e desaparecem de cena. É tanto que renegam a família a que pertencem a ponto de a apagar. Atiraram a pedra, mas agora escondem a mão e fazem crer que quem os contesta e confronta está alucinado, criou fantasmas e anda a lutar contra moinhos de vento. Seja pela voz de António Guerreiro, seja pelo seu próprio comportamento, nesta altura do campeonato os woke dissimulam-se, confundem-se com a folhagem, fingem-se de mortos ou, pior, de inexistentes, como se nunca tivessem estado lá.

Mas estiveram e estão. Por isso, é melhor que os seus opositores permaneçam atentos e que não se deixem ir em truques de ilusionismo e canções de embalar, porque quando esta baixa-mar passar os woke voltarão à carga e com o radicalismo do costume.