Em boa hora Aura Miguel, a vaticanista portuguesa que acompanhou três Papas em 13 Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ), publicou agora as suas recordações sobre as JMJ (Um longo caminho até Lisboa, Bertrand Editora, 2023). A obra conta com um prefácio do Papa Francisco, do qual foram retiradas as respostas a esta entrevista virtual.

– Santo Padre, que recordações guarda da primeira JMJ a que presidiu como Papa?

– “Ainda trago nos olhos e no coração a imensa multidão de jovens que me acolheu em Julho, há dez anos, no Rio de Janeiro. Aqueles percursos no papamóvel, desde o forte militar onde aterrou o helicóptero até ao lugar dos encontros e das celebrações em Copacabana, ficarão para sempre impressos na minha memória: o entusiasmo avassalador dos jovens que me lançavam bandeiras, chapéus, camisolas; que me ofereciam um gole de ‘mate’; que envolviam com o seu abraço o novo bispo de Roma, que tinha vindo honrar um compromisso assumido pelo seu predecessor. Uma experiência inesquecível.

– Aconteceu com Vossa Santidade o mesmo que tinha acontecido com o seu antecessor, o Papa Bento XVI, não foi?

– “A mim, tal como a Bento XVI, aconteceu o mesmo: a primeira viagem internacional do nosso pontificado ocorreu por ocasião de uma Jornada Mundial da Juventude – no meu caso, no Rio de Janeiro; em 2005, em Colónia, ou seja, na sua pátria, no caso do Papa Ratzinger, também ele há poucos meses no Trono de Pedro. Ambos fomos, por assim dizer, ‘inseridos’ no rasto daquilo que São João Paulo II tinha inaugurado, seguindo uma inspiração que lhe fora sugerida pelo Espírito Santo.

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– São João Paulo II, na primeira JMJ, em Buenos Aires, em Abril de 1987, fez “um apelo vibrante e persuasivo à conversão pessoal”, como convidou os jovens a colaborarem “na obra redentora de Cristo”, que é a Igreja, e a anunciar “a todos que só em Cristo, morto e ressuscitado, há salvação e redenção”. Este espírito mantém-se?

– “As JMJ foram e continuam a ser momentos fortes para a experiência de tantos adolescentes, de tantos jovens, e a inspiração inicial que moveu o nosso amado Papa Wojtyla não perdeu a força. Aliás, a mudança de época que, mais ou menos conscientemente estamos a viver representa um desafio também e sobretudo para as jovens gerações. (…) As JMJ foram um antídoto contra o ‘balconear’, contra a anestesia que leva a preferir o sofá, contra o desinteresse. Envolveram, movimentaram, implicaram, desafiaram gerações de mulheres e de homens.

– Esta JMJ é a primeira que acontece depois da pandemia e em plena guerra da Rússia contra a Ucrânia. Que comentário lhe sugerem estes dois dramas?

– “Hoje, depois da experiência terrível da pandemia, que nos colocou a todos dramaticamente perante o facto de que não somos os donos da nossa vida e do nosso destino, e de que só nos podemos salvar juntos, o mundo precipitou-se no vórtice da guerra e do rearmamento. Uma corrida para as armas que parece ser imparável e que arrisca levar-nos à autodestruição. A guerra que foi travada contra a martirizada Ucrânia, uma guerra sangrenta no coração da Europa cristã, é apenas um de tantos pedaços daquela Terceira Guerra Mundial que, infelizmente, começou há anos. Muitas guerras continuam a ser esquecidas, muitos conflitos, muitas violências indescritíveis continuam a ser perpetradas.”

– O Santo Padre sempre foi particularmente sensível ao drama dos refugiados. “Como é que tudo isto interroga os jovens? A que são chamados, com as suas energias, as suas visões de futuro, o seu entusiasmo?

– “São chamados a dizer ‘We care’, interessa-nos, o que acontece no mundo é-nos caro; os sofrimentos de quem sai de casa e corre o risco de não voltar, o destino de tantos coetâneos que nasceram e cresceram em campos de refugiados, a vida de tantos jovens que, para fugirem a guerras e perseguições, ou mesmo somente para procurarem algo para sobreviver, enfrentam a travessia do Mediterrâneo e morrem engolidos pelos abismos.

– É esta a segunda viagem do Papa Francisco a Portugal, um país europeu, quando é sabido que prefere visitar os países do terceiro mundo.

– “Interessa-nos, é-nos querido o destino de milhões de pessoas, de tantas crianças, que não têm água, comida, cuidados médicos, enquanto os governantes parecem competir para ver quem gasta mais em armas sofisticadíssimas. Interessa-nos e é-nos querido quem sofre no silêncio das nossas cidades e precisa de ser acolhido e escutado.

– Uma preocupação dominante do pontificado actual é a ecologia. Mas o Santo Padre também se interessa pelo ambiente digital, que pode desumanizar o mundo.

– “Interessa-nos e é-nos querido o destino do planeta em que vivemos e que somos chamados a preservar, para o entregar a quem virá depois de nós. Tudo nos interessa e nos é querido, até o ambiente digital em que vivemos mergulhados, e que somos desafiados a transformar e a tornar cada vez mais humano.

– Que conselho daria à comunicação social, em relação à JMJ?

– “Na mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais, em 2021, convidei os jornalistas a gastarem a sola dos sapatos para que toda a boa comunicação, toda a verdadeira informação, seja fundamentada pelo encontro pessoal com a realidade, com as situações, com as pessoas. (…) O ofício do jornalista não consiste em observar externamente e analisar assepticamente o que acontece. Quem comunica e informa deixa-se tocar pela realidade que encontra e, por isso, é capaz de a contar apaixonando os seus ouvintes e os seus leitores. Só quem se deixou apaixonar e comover faz apaixonar e comover quem ouve e quem lê.

– Que frutos espera o Papa Francisco desta JMJ?

– “Não basta fazer uma experiência ‘forte’ se depois esta não é cultivada, se não encontra um terreno fértil para ser sustentada e acompanhada. As JMJ são um acontecimento de graça que desperta, alarga o horizonte, potencia as aspirações do coração, ajuda a sonhar, a ver mais além. São uma semente plantada que pode trazer bons frutos. Assim precisamos hoje de jovens despertos, desejosos de responder ao sonho de Deus, que se interessem pelos outros. Jovens que descubram a alegria e a beleza de uma vida gasta por Cristo no serviço aos outros, aos mais pobres, aos que sofrem.

* Crónica redigida na véspera da chegada do Papa Francisco a Portugal.