O título não poderia ser mais alarmista, mas foi assim que a Infovaticana noticiou a Carta Apostólica, em forma de Motu próprio, de 8-8-2023, do Papa Francisco, que alterou algumas normas do Código de Direito Canónico sobre as prelaturas pessoais. Muito embora esta reforma legislativa não seja directamente aplicável ao Opus Dei, já que se rege pelos seus estatutos, é óbvio que visa a instituição, que é a única prelatura pessoal da Igreja católica.
O Opus Dei foi fundado, a 2 de Outubro de 1928, por São Josemaria Escrivá (1902-1975), que o Papa São João Paulo II beatificou e canonizou. Aprovado inicialmente como pia união e depois como instituto secular, o fundador desistiu depois deste último estatuto canónico porque, entretanto, tinha sido assimilado às instituições de vida consagrada, não correspondendo, portanto, ao carisma fundacional, essencialmente secular e predominantemente laical. Por esse motivo, nos últimos anos da sua vida e sendo Papa São Paulo VI, S. Josemaria propôs que o Opus Dei fosse erigido como prelatura pessoal, uma instituição prevista pelo Concílio Vaticano II. Foi já no pontificado de São João Paulo II que, pela Constituição Apostólica Ut sit, de 28-11-1982, a Santa Sé, depois de consultado o episcopado mundial, erigiu a Prelatura pessoal da Santa Cruz e Opus Dei.
As prelaturas são, em geral, estruturas jurisdicionais, ou hierárquicas, análogas às dioceses e aos ordinariatos, que constam de um prelado, ou ordinário, clero próprio e fiéis. Podem ser territoriais, quando delimitadas geograficamente; ou pessoais, quando o âmbito da jurisdição do prelado se determina por uma razão de carácter pessoal, como é, no caso do Opus Dei, uma específica vocação para a santidade e o apostolado no meio do mundo. Neste sentido, a prelatura tem uma origem carismática e, pela sua estrutura hierárquica, é análoga às dioceses e aos ordinariatos: sob a autoridade do prelado, como ordinário próprio, os seus membros, clérigos e leigos, realizam uma específica missão pastoral, que é, no caso do Opus Dei, a santificação dos cristãos através do seu trabalho e família. Carisma e hierarquia não se opõem: a Igreja teve uma origem carismática, que depois foi institucionalizada de forma hierárquica.
Na medida em que o fim desta instituição se identifica com a missão da Igreja, que a todos os fiéis deve proporcionar os meios necessários para a santificação e apostolado, a prelatura não é um fenómeno associativo, mas uma expressão singular da missão eclesial. Daí o seu carácter hierárquico, que significa serviço e não poder.
Alguns exemplos permitem explicar a necessidade destas estruturas. Os párocos não podem pregar, em geral, retiros espirituais durante o fim de semana, porque o impede o munus paroquial, mas o clero das prelaturas pessoais tem disponibilidade para o fazer. Os militares, em missão no estrangeiro, não podem ser acompanhados pelos seus párocos, mas sim pelos capelães do ordinariato militar, uma diocese não territorial, mas pessoal.
Não obstante a natural analogia com as prelaturas territoriais, os ordinariatos e as dioceses, o Código de Direito Canónico não foi feliz na regulamentação das prelaturas pessoais. No anteprojecto de 1980, estavam inseridas na parte II do livro II, que trata “Da constituição hierárquica da Igreja”. Nesse texto previa-se a equivalência entre as prelaturas pessoais e territoriais; e reconhecia-se a possibilidade de terem fiéis próprios (cân. 335§2 e 337, respectivamente). No entanto, esses dois possíveis cânones não foram incluídos no Código de Direito Canónico, de 1983. As prelaturas pessoais não constam na parte que se refere à constituição hierárquica da Igreja, mas na parte que trata dos fiéis em geral, depois do título sobre os ministros sagrados, ou clérigos, e antes das associações de fiéis. Por este motivo, há quem questione se as prelaturas pessoais fazem parte da estrutura hierárquica da Igreja. O Código também não prevê que os leigos pertençam à prelatura, embora admita que com ela possam colaborar, o que levou a crer que as prelaturas pessoais são, portanto, instituições essencialmente clericais.
Para resolver estas incongruências, São João Paulo II tomou duas iniciativas. A primeira foi a nomeação episcopal dos prelados do Opus Dei, nas pessoas do sucessor do fundador e do seguinte prelado, equiparando-os aos ordinários das prelaturas territoriais, dos ordinariatos castrenses e das dioceses, que são bispos. Por esta razão, a Constituição Apostólica Ut sit determinava que a prelatura pessoal do Opus Dei dependia, como as citadas instituições hierárquicas, do Dicastério para os Bispos.
São João Paulo II também esclareceu que, no Opus Dei, os leigos não são meros colaboradores externos, pois não só cooperam organicamente com o prelado e o seu clero, como ocupam a maioria dos cargos de governo da instituição, que é eminentemente laical: só 2% dos membros do Opus Dei são clérigos. O prelado do Opus Dei é o ordinário próprio do clero incardinado na prelatura, como o Bispo territorial o é para os sacerdotes diocesanos, mas também exerce uma verdadeira jurisdição em relação aos leigos da prelatura, apenas no que respeita aos fins pastorais desta, porque em tudo o resto, os fiéis da prelatura são, de facto e de iure, fiéis correntes e normais, que estão sob a jurisdição do seu Bispo diocesano. Também os militares, mantendo o vínculo com o Bispo e pároco competentes por razão do seu domicílio, estão sob a autoridade do ordinário castrense, que exerce sobre eles uma jurisdição convergente.
Não obstante a Constituição Apostólica Ut sit, de 28-11-1982, bem como a nomeação episcopal do primeiro e segundo prelados do Opus Dei, o Papa Francisco decidiu alterar o estatuto legal das prelaturas pessoais e, em particular, do Opus Dei. A esta sua decisão, mais pessoal do que sinodal, não é decerto estranha a recente iniciativa do Bispo de Barbastro-Monzón em relação ao Santuário de Torreciudad, edificado, mantido economicamente e atendido pastoralmente desde a sua fundação, em 1975, pelo Opus Dei, mas do qual agora o referido Bispo se quer apropriar. Também não lhe é alheia a influência do cardeal jesuíta Gianfranco Ghirlanda, que sempre se opôs à aprovação do Opus Dei como prelatura pessoal.
A primeira alteração ocorreu por ocasião da confirmação da eleição do sucessor do último bispo prelado do Opus Dei. Com efeito, nessa ocasião o Papa Francisco confirmou a eleição do Padre Fernando Ocáriz, nomeando-o prelado, mas não o promoveu ao episcopado, quebrando uma tradição existente desde a criação da prelatura.
Depois, pela Constituição Apostólica Praedicate Evangelium, de 19-3-2022, que reorganizou a cúria pontifícia, transferiu as prelaturas pessoais do Dicastério para os Bispos para o do Clero (artigo nº 117), ou seja, contradisse a sua equiparação às prelaturas territoriais, ordinariatos e dioceses, assimilando-as às associações de clérigos.
Embora o Motu próprio de 14-8-2022, Ad charisma tuendum, afirme que o seu objectivo “é confirmar a Prelatura do Opus Dei”, na realidade modificou o seu estatuto jurídico, ao alterar a Constituição Apostólica Ut sit, que erigiu esta prelatura. Com efeito, a transferência para o Dicastério do Clero – artigos 1, 2 e 6 – decorre de uma insuficiente compreensão do seu carisma, pois o Opus Dei foi sempre entendido, pelo seu fundador, como uma entidade essencialmente secular e laical, pelo que a sua equiparação às instituições clericais é contranatura. De facto, não só contradiz o carisma fundacional, como também a sua realidade eclesiológica: 98% dos seus membros são leigos.
No seu artigo 3º, este Motu próprio determina que “os Estatutos próprios da Prelatura do Opus Dei serão convenientemente adaptados; com proposta da própria Prelatura, a ser aprovada pelos órgãos competentes da Sé Apostólica.” Para este efeito, o prelado convocou um congresso extraordinário, que recolheu as sugestões dos seus fiéis, sacerdotes e leigos, em ordem a esta revisão estatutária, que está em curso.
Contrapondo carisma e hierarquia, como se a Igreja não fosse, em simultâneo, carismática e hierárquica, proíbe-se que os prelados sejam, ou possam vir a ser, bispos, não obstante a experiência dos dois anteriores prelados, que o foram exemplarmente, pois o primeiro até já foi beatificado. A título de compensação, concede-se-lhes o título de Monsenhor, que também a São Josemaria foi dado, embora não usasse as respectivas vestes, nem aceitasse o correspondente tratamento, porque sempre quis ser tratado, apenas e só, por ‘Padre’, para assim expressar o carácter familiar do Opus Dei.
Pela Carta Apostólica, em forma de Motu próprio, de 8-8-2023, são reformados alguns artigos do Código de Direito Canónico sobre as prelaturas pessoais, que são equiparadas, ou assimiladas, às associações públicas clericais de direito pontifício, com faculdade de incardinar clérigos. Os seus estatutos podem ser aprovados, ou emanados, da Sé Apostólica. O prelado é o ordinário do clero da prelatura, como o bispo territorial o é para os padres diocesanos, embora sem ser, nem poder ser, bispo. Em relação aos leigos, o prelado é apenas moderador, pois estes estariam apenas sob a jurisdição do seu bispo diocesano. Portanto, diz-se que a prelatura é associativa e não hierárquica, bem como clerical, o que explica a sua transferência para o Dicastério do Clero. Ao ser equiparada às associações de clérigos, em detrimento da assimilação natural com as outras prelaturas, ordinariatos e dioceses, também se questiona a jurisdição ordinária do prelado sobre os leigos, no que respeita aos fins pastorais de prelatura. Qual é, então, a condição jurídica dos fiéis leigos do Opus Dei? Passam a ser, apenas, meros colaboradores externos da prelatura, entendida esta como uma entidade associativa exclusivamente clerical?!
Como cada prelatura pessoal se rege pelos seus estatutos, as alterações legais agora verificadas não são de imediata aplicação ao Opus Dei que, graças a Deus, não tem dúvidas quanto à sua identidade e missão pastoral e que se mantém coeso e unido ao Papa, sob a direcção firme e serena do seu Prelado, que vai estar em Portugal nos primeiros dias de Outubro. Será exagerado afirmar que, com esta intervenção, Francisco quis ‘dinamitar’ o Opus Dei, mas não restam dúvidas de que está em curso uma tentativa de desconstrução das prelaturas pessoais, previstas pelo Concílio Vaticano II e realizadas por São João Paulo II quando, pela Constituição Apostólica Ut sit, criou a Prelatura pessoal da Santa Cruz e Opus Dei.
Se esta tendência se confirmar e acentuar, pode acontecer com as prelaturas pessoais o que já aconteceu com os institutos seculares: nesse caso, o Opus Dei teria de prescindir da sua actual configuração canónica e, mais uma vez, procurar uma solução jurídica adequada ao seu carisma e missão eclesial porque, como disse o primeiro Papa, “deve-se obedecer antes a Deus do que aos homens” (At 5, 29).