Há uma discussão que o país tarda em fazer, agudizando com essa omissão um dos seus maiores problemas estruturais: o peso do Estado. A discussão do número de funcionários – que a esquerda acha sempre poucos e a direita acha sempre muitos – é tanto mais estéril quanto menos nos perguntarmos qual a sua utilidade.

Quando antes do Verão a crise da greve do transporte das matérias perigosas incendiou o país, discutiram-se alguns aspectos importantes e aprenderam-se algumas coisas interessantes: da obsolescência da lei da greve à lição de que a esquerda está sempre, sempre do lado dos trabalhadores… porquanto esses estejam sindicalizados na CGTP.

Porém, no meio de tanto ruído, passou ao lado da discussão o debate sobre a marca de um Estado omnipresente e omnipotente, que vai muito para além do que uma economia livre e competitiva desejaria e onde nada se faz sem um papel com a assinatura de um burocrata.

Há uns anos o Gato Fedorento popularizou uma rábula que ficou conhecida por Papel? Qual papel? Neste sketch o quarteto ridicularizava um certo funcionalismo público, onde o papel – qual papel? – era o alfa e o ómega da (in)acção; no caso, um cavalheiro queria uma licença para andar na via pública ao pé-coxinho a partir das 22h00, imaginem agora, os leitores, se quisesse transportar matérias perigosas.

Diz-nos o bom senso que o transporte de matérias perigosas tem de ser regulamentado; e eu tendo a concordar. A regulamentação adereça sempre uma resposta bem-intencionada a uma necessidade de segurança e encerra em si uma insofismável bondade intrínseca. Vai daí o Estado português entendeu obrigatória a frequência de formação adequada pelos condutores de veículos que transportam estas matérias. Quem nunca?

Porém, quem conhece o Estado, perguntar-se-á neste momento, “mas basta a formação?” Bom, mais ou menos. É necessário que o condutor de mercadorias perigosas seja titular do papel que certifica a formação, que é emitido e renovado pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P. (IMT), com validade máxima de 5 anos, e que obtém após aprovação em exame, a que acede após a tal formação específica. É necessário também que demonstre reunir condições físicas e psíquicas para o efeito; que eu presumia terem sido avaliadas aquando da carta de condução, mas que pelos vistos não. E se sim, nada como prová-lo outra vez.

Mas e então, onde é que os condutores podem frequentar essa formação e realizar esse exame, para obterem o tal papel? Já lá vamos ao onde. Primeiro o quê: o curso de formação. O curso também tem de ser aprovado pelo mesmo IMT. E lecionado, claro, por uma entidade formadora também certificada pelo IMT. Repito e sintetizo: o IMT certifica o condutor, depois deste ter frequentado o curso aprovado pelo IMT, obrigatoriamente ministrado por uma entidade certificada pelo IMT.

Mas quem pensou que o certificado bastava, ou é ingénuo ou não sabe no que se está a meter. Assegurado o papel o condutor tem de preencher um outro papel (no caso o requerimento Modelo 5 IMT) e entregar uma quantidade imensa de outros papéis, e, claro, “o” papel; leia-se dinheiro, para taxas e taxinhas, que nada disto se faz de borla.

Voltemos ao onde. Os condutores podem frequentar essa formação nas empresas que tenham obtido uma certificação específica concedida pelo IMT por um período de 5 anos. Para as empresas é que pode ser um pouco mais complicado. Para a obterem têm de instruir o processo com um papel (Modelo 13 IMT), mais o outro papel (certificado de registo criminal dos gerentes, diretores ou administradores da entidade formadora), o outro papel (certidão da conservatória do registo comercial no âmbito da atividade de formação profissional ou ensino), os outros papeis (documentos comprovativos de que a entidade formadora tem a situação regularizada perante a administração fiscal e a segurança social, ou autorização para as respetivas consultas por parte do IMT), e mais e mais e mais papéis (onde conste a indicação dos locais de formação da entidade formadora, designadamente a localização das instalações, número de salas, respetiva área e lotação, meios didáticos e pedagógicos disponíveis para os cursos teóricos, equipamento informático para simular a realização do exame multimédia, e ainda meios para os exercícios práticos…….. zzzzzzz…… zzzzzzz…….) [Desculpem os estimados leitores, entusiasmei-me; para detalhe maior, e mais despertos, vejam por favor a Deliberação n.o 517/ 2018, do IMT].

Nota importante: não esquecer “o” outro papel; porque há mais taxas e taxinhas para pagar.

Uma epopeia, certo? Errado: meia epopeia. Porque ainda não acabou.

Não basta que a entidade esteja certificada, é também necessário que os cursos sejam aprovados. Para isso é necessário o mesmo papel (Modelo 13 IMT), e outros papéis todos, com a indicação do programa de formação detalhado, contendo a distribuição das sessões de ensino pelos dias de formação, incluindo os módulos, as matérias a ministrar e as metodologias de ensino previstos, a designação dos formadores, incluindo os respetivos currículos académicos e profissionais, que evidenciem os conhecimentos técnicos e jurídicos em matéria de regulamentação do transporte de mercadorias perigosas – considera-se satisfeito este requisito quando os formadores sejam titulares de certificado de conselheiro de segurança, mas esqueçam, que isto é outra história –, e ainda cópia dos respetivos certificados de aptidão profissional (CAP) de formador emitidos pelo Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP), os manuais de formação referentes aos cursos a ministrar, devendo conter as matérias a serem efetivamente ministradas, refletindo o conteúdo e organização da formação prescritos e correspondendo à estrutura-tipo fixada, podendo entretanto ser incluídas ou referenciadas em anexo outras matérias para consulta, os currículos académicos e profissionais do(s) autor(es) dos manuais de formação.

E é tudo. Não, não é, estava a brincar. Falta, claro, “o” papel, para o respectivo pagamento das taxas e taxinhas legalmente aplicáveis.

Depois disto, a decisão final há-de chegar, dependendo da correta instrução do processo, do preenchimento dos requisitos técnicos, de idoneidade e de competência profissional do coordenador técnico-pedagógico e dos formadores, da adequação das instalações e dos meios audiovisuais e da adequação dos manuais; coisa que um técnico do IMT, numa informação, com um parecer de algum dirigente intermédio e um despacho de um dirigente superior cuidará de assegurar.

Repito o que disse e indago: o transporte de matérias perigosas deve ser regulamentado, mas ao ler este emaranhado de requisitos administrativos e burocráticos, papéis, taxas e taxinhas e me questiono se este megaprocesso é necessário e se assegura o propósito para o qual foi criado, lembro-me o que Henry Mintzberg, um guru da gestão, disse um dia sobre o planeamento

estratégico; que este era como a dança da chuva, não fazia chover, mas lá que dançávamos cada vez melhor dançávamos.

No nosso caso sobra-nos um Estado hiperbólico, sempre ávido de mais recursos, cada vez mais autocentrado e autojustificado, e cada vez mais distante das necessidades a que deveria dar resposta. E um país mais pobre, menos competitivo e mais dependente.

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