Não quer continuar na pele de idiota? Então destrua toda e qualquer insinuação sobre a sua pertença a uma seita potencialmente racista, isto é, identificada com o crime, uma vez que da sua mancha racial você jamais se livrará e, quem sabe, já a transmitiu ou transmitirá a filhos, netos, bisnetos, por aí adiante. Mamadou Ba, Joacine Katar Moreira, Isabel Moreira, Fernanda Câncio, Boaventura de Sousa Santos, Chico Buarque e todos os antirracistas encartados de Portugal, Brasil, restante Europa, Estados Unidos da América ou mundo são irrelevantes. O seu inimigo é você, é a sua consciência branca.
Não duvidemos que a consciência digna do nome é simplesmente humana, universal, não tem cor. Todavia, há décadas que a sua foi tomada de assalto e pintada de consciência branca, sinónimo de consciência pesada, e é você quem tem estado encarregue de preservar e abrilhantar a pintura. Aos antirracistas basta-lhes a sugestão da existência da consciência negra, antónima da sua, a consciência leve. Fazem-no a toda a hora e em toda a parte – no ensino, literatura, imprensa, cinema, música, conferências, arruadas, debates, encontros, protestos – e você quebra, não consegue resistir ao papel de contraparte.
Se não sabe, o Brasil alcançou o nirvana no início do ciclo glorioso da governação do Partido dos Trabalhadores, o PT, quando, em 2003, imaginando-se na época da escravatura, instituiu 20 de novembro como o Dia Nacional da Consciência Negra. Nesse campeonato de cores, no entanto o supremacista antirracista é o camaleão, a pele branca que se autoconvence possuidora de uma sofridíssima consciência negra capaz de fazer inveja aos negros mais negros de pele. E se algum destes se atreve a recusar o estatuto de vítima será denunciado, pelo camaleão, de inverter a ordem natural das raças, pele negra com consciência branca.
Em 1949, George Orwell imaginou um mundo distópico que chegaria em 1984. Acabou ultrapassado pelos absurdos da realidade em número, género e grau a ponto de, entre 2010 e 2013, eu ter necessitado de uma longa terapia para tornar a minha consciência incolor, simplesmente humana. Foram três anos em que me submeti a uma aturada pesquisa pós-doutoral sobre o racismo.
Li o que havia para ler de grandes e pequenos especialistas. Porém, porque a vida vivida nunca repousa, incluí na minha autoterapia o dever de confrontar as teses académicas escritas, por isso estáticas, com a vida concreta de pessoas comuns, sempre dinâmica. Durante cerca de sete meses fiz o que se chama trabalho de campo, distribuído pelos anos de 2010 e 2011. Calejado pela experiência anterior com as teorias sobre o colonialismo que descartavam a vida vivida pelos negros colonizados comuns, sabia que a ciência universitária é exímia em produzir ilusões muitíssimo mais armadilhadas do que Orwell alguma vez teria sido capaz, e a ciência do racismo encabeçava a lista das suspeitas.
Trata-se de um saber científico cujas patentes estão reservadas apenas a uma subespécie racial, a branca progressista de esquerda, que não apenas usurpa a representatividade das demais subespécies raciais brancas, como ainda usurpa as diversas sensibilidades genuínas de negros, índios, mulatos, mestiços, japoneses, indianos, árabes, por aí adiante. Ciência sobre todas as raças quase só elaborada e, seguramente, tutelada e instigada por uma subespécie de apenas uma das raças não constituirá a definição mais-que-perfeita de racismo?
Por isso, caro leitor, só a si compete avaliar as duas conclusões inabaláveis a que cheguei. Uma, o racismo foi um fenómeno histórico que teve relevância social inquestionável num dado contexto temporal. Outra, com o fim da discriminação racial formalmente instituída nos Estados Unidos da América, do nazismo, da colonização europeia, da guerra fria e do apartheid sul-africano deixou de ser possível comprovar empiricamente a persistência do fenómeno e, desse modo, o racismo deixou de existir.
Como, na atualidade, não é mais possível comprovar a persistência de fronteiras raciais, as nossas sociedades são equiparáveis a um sujeito que a cada dia agrava a ambição de derrubar o muro de Berlim, se necessário pela violência, fazendo por ignorar que esse mesmo muro foi derrubado há três décadas, em 1989.
Não é mais possível colher evidências empíricas que assegurem, na atualidade, a existência de lógicas raciais discriminatórias com um sentido claro, isto é, que responsabilizem uma das partes e inocentem a outra. De resto, o racismo ou está dentro das instituições, em particular as tuteladas pelo Estado, como os órgãos de soberania, ensino, justiça, polícia, repartições públicas, transportes, sendo visível na cor da pele exclusiva ou racialmente hierarquizada dos seus funcionários e servidores, ou não está. Um Estado tem de ser necessariamente assim para ser justo, mas deixa de o ser quando impõe à força esse mesmo modelo à Sociedade atropelando a liberdade, a autonomia ou as escolhas subjetivas desta. Não hesite em designar essa tentação de totalitária, criminosa.
Houve um passado histórico em que as fronteiras raciais eram muito claras. O sintoma era a rejeição social de casamentos fora da identidade racial dominante que se confundia com outros interditos sociais, como matar, violar ou roubar. Tempo histórico em que não havia dúvidas que era a identidade branca que discriminava, pela rejeição e pela punição, e que a identidade negra era a discriminada. Não é de somenos ter em conta que a última não tinha acesso livre a instituições e meios de autodefesa e de promoção social formais e informais, legais e ilegais, justos e injustos, próprios ou patrocinados por terceiros.
Como, na atualidade, não é mais possível comprovar a persistência de fronteiras raciais com tais características, as nossas sociedades são equiparáveis a um sujeito que a cada dia agrava a ambição de derrubar o muro de Berlim, se necessário pela violência, fazendo por ignorar que esse mesmo muro foi derrubado há três décadas, em 1989. Daí que a alienação antirracista constitua uma das manifestações mais perturbantes da patologia social da relação com o tempo histórico.
Caro leitor, se consegue lidar com as duas teses de sentidos opostos – o racismo existiu e o racismo deixou de existir – passou no primeiro teste de saúde mental. Tem tudo para ser capaz de desadjetivar a sua pesada consciência branca transformando-a apenas em consciência. Só essa é humana, isto é, universalmente válida. É ela que lhe imporá que passe a exigir aos outros aquilo que exige a si mesmo. Não se iluda. Não há outro caminho para vivermos com dignidade e em paz.
Tenho de lhe pedir que concilie um outro contraste. Uma grande vigarice pode resumir-se a um somatório de meias-verdades. É por isso que só pode aceitar como válido qualquer juízo de valor sobre a sua pertença racial quando os julgamentos resultarem da confrontação entre, por um lado, a inserção das minorias negras nas sociedades brancas e, por outro lado, a inserção das minorias brancas nas sociedades negras. A sua sociedade só será um inferno para as minorias se você e os seus, uma vez tornados minorias nas sociedades originárias dessas minorias que o contestam, sentirem que vivem próximo do paraíso racial.
E se você não deve ser generoso na esperança de uma retribuição, também não deve ser generoso na certeza de uma humilhação. Freud defendia que o princípio Amarás o próximo como a ti mesmo é capaz de não ser boa ideia quando esse próximo não partilha os mesmos princípios morais que você. Será muito mais avisado seguir o princípio da realidade: Ama o próximo como o próximo te ama a ti. Era a cura de Freud para O Mal-Estar na Civilização (1930). A sabedoria não envelhece.
O personagem Meursault, d’O Estrangeiro, acabou condenado à morte não tanto por ter assassinado um árabe numa rixa, em Argel, mas sobretudo por não ter chorado no velório da sua mãe. Em 1942, o romance de Albert Camus era ficção. O racismo atual ultrapassou-a em realismo.
Sugiro-lhe até um exercício especulativo. Sendo branco, sentir-se-ia seguro se se encontrasse solitário, ao anoitecer, e tivesse de atravessar um bairro negro de uma metrópole africana, por exemplo, de Johanesburgo, na África do Sul? Sendo negro, sentir-se-ia seguro se, em idênticas circunstâncias, tivesse de atravessar um bairro branco de Estocolmo, na Suécia? Em qualquer das possibilidades, na eventualidade de uma ocorrência desagradável que o obrigasse a procurar proteção no posto da polícia próximo, é capaz de imaginar o que lhe sucederia? É capaz de imaginar como reagiria a comunicação social se você relatasse essa experiência pessoal que o perturbou, ofendeu ou agrediu e que não é possível ignorar que teve um conteúdo racial?
Veja agora se considera razoável deslocar o conceito de racismo do seu tempo histórico, do século XX, para o atual tempo histórico e social, o século XXI, uma vez que esse conceito pressuporá para sempre a culpabilidade da pertença racial branca na sua relação com a negra, quando esta também alimentou um ciclo histórico de violência manifesta anti-branco, conforme clarificarei no ponto seguinte. Se você for branco e acabar com as tripas de fora ou levar um tiro na nuca, ou se você for branca e acabar violada – claro que a justiça atuará, tal como se você for negro ou negra. Mas não finja que não sabe, como eu, que no primeiro caso não se incluem as agravantes raciais na punição do ato criminoso. Mesmo em autodefesa e fazendo algo menos grave no cumprimento de uma missão, por cima se for filmado no ato, se você for branco e o acusado conte com uma pesadíssima agravante de ofensa racial, mais não seja por via do linchamento social na imprensa, mesmo antes de qualquer tribunal o dar como culpado.
O personagem Meursault, d’O Estrangeiro, acabou condenado à morte não tanto por ter assassinado um árabe numa rixa em que se envolveu, em Argel, mas sobretudo por não ter chorado no velório da sua mãe, atitude que ofendeu gravemente os costumes da época. Em 1942, o romance de Albert Camus era, naturalmente, ficção. O racismo atual ultrapassou-a em realismo.
Concluamos este ponto noutra perspetiva. Desde finais do século XIX o uso da palavra escravatura foi dando lugar ao uso da palavra racismo. Apesar da persistência de elementos comuns entre um e outro fenómenos, as pessoas da época foram inteligentes em perceber que tinha ocorrido uma transformação histórica fundamental no mundo ocidental, a abolição da escravatura negra. Essa transformação implicava adaptar o pensamento à realidade vivida através da renovação do vocabulário, pressuposto chave da preservação da sanidade mental, da fuga à alienação. Em pleno século XXI fazemos o inverso, insistimos em não abrir mão da palavra racismo. Acha mesmo que ainda vivemos no tempo do nazismo ou do apartheid?
Todavia, como as identidades raciais não desaparecem, apenas reinventam os seus significados no decurso do tempo, só será possível compreender o que elas significam, na atualidade, recorrendo a designações que não partam comprometidas com uma forte carga histórica entretanto desaparecida. É a possibilidade de gerar abordagens justas, neutras, sérias, fidedignas, promotoras da verdade, da paz e da concórdia. Na sequência da minha autoterapia, sugeri as expressões relações raciais ou relações inter-raciais no lugar do defunto racismo.
O racismo teve princípio, meio e fim
Como o feudalismo, os impérios europeus, a inquisição, a escravatura negra ou o iluminismo, o racismo foi um fenómeno histórico que teve um princípio, um meio e um fim. Inclusive, o racismo faz parte do rol de fenómenos históricos e sociais suicidas, aqueles que a partir de um certo momento vão ganhando uma carga de imoralidade irreversível sempre agravada, mesmo quando antes eram legítimos.
Não foi apenas a natureza subjetiva do fenómeno que foi exorcizada na consciência do mundo ocidental a partir do momento em que o racismo foi perdendo legitimidade moral, social, política, civilizacional, sendo que o que hoje existe é substantivamente distinto do passado e resume-se à autodefesa de diferentes identidades raciais ou étnicas situadas todas num mesmo plano moral (negros, asiáticos, árabes, índios, brancos, ciganos, por aí adiante). Existem também factos históricos objetivos que marcam o princípio do racismo (o final da escravatura e os inícios da dominação colonial europeia efetiva de África, no século XIX), o meio do racismo (a derrota do nazismo, em 1945, que inverteu o ciclo de tolerância à discriminação racial) e o fim do racismo (em 1994 com a dissolução formal do apartheid na África do Sul).
Portanto, o fim do racismo foi factual, não algo que um dia terá de acontecer. Além da sucessão das independências africanas, entre finais dos anos cinquenta e meados dos anos setenta, cujo âmago comportava uma profunda transformação ao nível das relações raciais entre brancos e negros da qual todo o mundo foi testemunha, no último bastião histórico do racismo, a África Austral, as minorias brancas foram violentamente expulsas ou intimidadas, pelas esmagadoras maiorias negras, em toda a região que, recorde-se, até então era a mais próspera do continente, equivalente à Europa Ocidental no contexto da Europa no seu conjunto, com os regimes dominados por minorias brancas segregacionistas, a África do Sul e a Rodésia (Zimbabwe), a desempenharem papel económico equivalente ao da Alemanha ou do Reino Unido no hemisfério norte.
O fim do racismo foi factual, não algo que um dia terá de acontecer. Além da sucessão das independências africanas, no último bastião histórico do racismo, a África Austral, as minorias brancas foram violentamente expulsas ou intimidadas, pelas esmagadoras maiorias negras.
A minoria branca foi violentamente expulsa, sem direito a retaliações minimamente proporcionais, de Angola, Moçambique e Zimbabwe e, na África do Sul e na Namíbia, perdeu o controlo do Estado que garantia os seus privilégios e, com isso, alguns segmentos brancos foram remetidos para situações de miséria e, em geral, tornaram-se alvos de uma violência criminal impensável no contexto histórico da dominação racial branca. Não interpretar essa conjuntura de violência racial consequente anti-branco como o ponto final definitivo do ciclo histórico em causa significa conferir legitimidade moral ao direito de vingança eterna dos novos agressores para prosseguirem rumo ao genocídio branco. É esse barril de pólvora que a indolência dos ocidentais, de intelectuais a indivíduos comuns, vai alimentando.
Se você, caro leitor, acha que o Império Romano não desapareceu, o absolutismo monárquico está bem vivo, inclusive em Portugal, no próximo domingo pode assistir a um auto-de-fé no Terreiro do Paço e aproveitar comprar um escravo negro para lhe limpar a vivenda a baixo custo, ou que a primeira guerra mundial ainda está por terminar, os nazis têm sede no café da esquina ou Luanda aguarda instruções diárias da metrópole, do Presidente do Conselho, em Lisboa – nesse caso desisto de argumentar. Você vive no universo paranoico do racismo.
Como tenho esperança na sua sanidade mental, assumo que as minhas suspeitas sejam infundadas.
As grandes teses dos vigaristas sistémicos
Apresento-lhe agora uma súmula de teses de tal modo alojadas no nosso inconsciente e consciente social que desistimos, não ousamos, somos incapazes de contra-argumentar. Daí que eu sinalize, desde logo, as consequências das respetivas teses para instigar em si o respeito por si mesmo, quem sabe ajudá-lo a tornar-se num adulto racial. Se assim for, ganhará você e ganharão todos os outros, sejam maiorias ou minorias raciais.
1ª Tese – Se a minoria negra e cigana evidenciam maiores índices de abandono e insucesso escolar comparativamente à maioria branca é por causa do racismo desta. Contra ela, carrega-se nas expressões intimidatórias ‘racismo sistémico’ ou ‘racismo institucional’ [também válidas para as teses seguintes]. Logo, a escola em que os ocidentais acreditavam discrimina, razão para se imporem reformas ‘ad aeternum’. Consequência – Destruição da qualidade do ensino, o que prejudica todos, mas com maior gravidade os segmentos sociais mais carenciados de uma escola de qualidade, entre os quais as minorias negra e cigana.
2ª Tese – Se a minoria negra e cigana manifestam índices de criminalidade superiores aos da maioria racial branca é por causa do racismo da última. Logo, é preciso deslegitimar a crença e confiança na autoridade e na ordem que garantem a funcionalidade das mais variadas instituições (família, ensino, justiça, órgãos de soberania, empresas, por aí adiante). O pretexto são os abusos e a violência policial supostamente racializada. Consequência – Destruição dos fundamentos da ordem social, o que prejudica a vida social no seu conjunto, mas com maior severidade os segmentos sociais desfavorecidos que tendem a viver mais expostos à insegurança e à violência social e criminal, como as comunidades negra e cigana.
3ª Tese – Se a minoria negra e cigana evidenciam maiores dificuldades em ser social e economicamente empreendedoras é por causa do racismo branco. Logo, é preciso corrigir o inconsciente supremacista branco impondo-lhe a discriminação positiva das minoras raciais para ser possível promovê-las socialmente. Consequência – Destruição da universalidade do princípio moral da autorresponsabilidade que garante a funcionalidade das sociedades, o que prejudica todos, em particular os segmentos brancos remediados e desfavorecidos que terão legitimidade acrescida para se sentirem injustiçados por se juntarem ressentimentos raciais às anteriores razões socioeconómicas, o que agrava tensões e conflitos sociais.
4ª Tese – Se a minoria negra e cigana tendem a concentrar-se em bairros suburbanos cujos ambientes sociais e património urbanístico se degradam continuadamente é por causa do racismo branco, uma vez que pessoas como você, caro leitor, fazem o que podem para evitar viver, com as vossas famílias, num bairro degradado. Logo, nem sequer o deixam questionar o apoio financeiro dos poderes públicos à construção, rendas ou manutenção de certas áreas habitacionais de que você não beneficia, apesar do seu esforço individual e familiar, o que inclui o peso das obrigações fiscais. Consequência – O modo como se procede atenta contra o princípio social da continuidade entre os sacrifícios pessoais e familiares necessários para se obter e manter uma habitação própria e os sacrifícios coletivos necessários para se obter e manter bens públicos, como o autocarro que os indivíduos comuns utilizam, a escola que frequentam ou o hospital que resolve os seus problemas de saúde, posto que a degradação do património privado contamina diretamente a degradação do património público. Nestas e noutras circunstâncias, as primeiras, principais e mais sólidas provas de civismo são dadas na vida individual, familiar e privada. Antes do estado ou de qualquer outra entidade educar os indivíduos, é dever de cada um destes e respetivas famílias educarem-se a si mesmos. A palavra ‘sociedade’, no sentido social ou empresarial, significa isso mesmo.
5ª Tese – Se as sociedades maioritariamente negras são dominadas pela má governação, corrupção, miséria e criminalidade esse é o resultado da escravatura, do racismo, da exploração, da opressão e de outros males do passado causados pelos europeus que alegadamente destruíram a harmonia das sociedades ancestrais africanas. Logo, doutrinam-se as sociedades ocidentais a assumirem culpas próprias e alheias. Consequência – Aniquila-se a dignidade identitária do Ocidente, fonte inevitável de tensões, animosidades e conflitos sociais que, a prazo, agravam as dificuldades de aceitação e integração das minorias e corrompem-se os pressupostos que equilibram o sistema internacional.
Esse tipo de teses pode ser multiplicado. Importa ter em conta que os ideólogos do antirracismo partem das consequências observáveis para as causas explicativas dos fenómenos. Isso é lógico. Patológico é afunilar obsessivamente a explicação de fenómenos derivados de uma longa história milenar complexa no monodogma do racismo. Está mil vezes comprovado que a simplificação e manipulação grosseiras do passado, com consequências na orientação das políticas públicas, fazem com que estas consumam recursos humanos e materiais avultados proporcionais ao grau de destruição institucional e social que causam.
A inteligência desceu do céu para criar o racismo na terra
Sempre que admitirmos que brancos e negros manifestam atitudes e comportamentos com tendências distintas, temos necessariamente de admitir que no seu âmago estão maneiras de pensar coletivamente partilhadas. Estas transmitem-se de geração em geração, de século em século, de milénio em milénio a partir das relações quotidianas habituais no interior de cada identidade social.
Se durante milénios os povos viveram separados, no presente os que deles descendem tenderão a pensar e a comportar-se de maneiras distintas. Acontece que essa construção social do conhecimento é de tal modo sólida, de tal modo determinante no inconsciente e consciente coletivos, que pode resistir por gerações e séculos a fenómenos migratórios, voluntários ou forçados (como a escravatura), ou ao impacto de grandes transformações históricas (como a colonização europeia efetiva ou as independências africanas). Se nada é estático no pensamento humano e, consequentemente, nas atitudes e nos comportamentos quotidianos, a renovação é bem mais lenta do que os engenheiros sociais julgam.
Se durante milénios os povos viveram separados, no presente os que deles descendem tenderão a pensar e a comportar-se de maneiras distintas.
Compreender brancos e negros ao longo do seu percurso histórico milenar permite entender as tendências diferentes dos resultados escolares nas sociedades atuais acolhedoras de imigração multirracial, resultados que tendem a ser favoráveis nuns casos (populações brancas e asiáticas) e desfavoráveis noutros (populações negras ou comunidades ciganas). No mundo ocidental, reduzir isso a um sistema de ensino racialmente discriminatório, ou racista sistémico, atenta contra o mais elementar bom senso.
Claro que as comunidades minoritárias de matriz histórica originária (muito) distinta acabam por se adaptar, pelo menos em parte. Mas não se podem compensar milénios de diferenças históricas apenas na transição de pais para filhos ou pouco mais. É ainda claro que quanto maior o peso demográfico das comunidades imigrantes com ascendência civilizacional distinta da dos autóctones do mundo ocidental, tanto maior a sua propensão para a guetização e, desse modo, tanto mais retardado, difícil e conflitual será o processo de integração social dessa imigração que passará, necessariamente, pela sua adaptação bem-sucedida a um sistema de ensino moldado pelas características civilizacionais da sociedade acolhedora.
Na tradição judaico-cristã, a milenar transição da matriz ancestral originária para a contemporaneidade teve início há cerca de trinta e cinco séculos com o povo hebraico e, mais tarde, entrou na Europa há vinte e um séculos ou, se incluirmos a tradição filosófica grega clássica, há cerca de vinte e seis séculos, assim como avançou pelo mundo árabe há catorze séculos. Por seu lado, as sociedades da África Subsaariana mantiveram a sua autonomia civilizacional de matriz ancestral até ao século XIX, até à ocupação colonial europeia efetiva, e apenas no século XX iniciaram o processo consequente de transição da ancestralidade para a contemporaneidade de tipo ocidental.
Equiparável ao percurso dos povos de tradição budista ou hindu, a milenar tradição monoteísta iniciada pelos judeus, depois retomada e reinventada pelos cristãos e islâmicos, fez os povos transitarem do politeísmo animista (da adoração de vários deuses materializados em objetos exteriores ao sujeito, como animais, forças da natureza, pedras, imagens) para um ideal conceptual de Deus único (omnisciente, omnipresente, omnipotente) que, por natureza, vive no interior do sujeito, isto é, com o monoteísmo a representação da divindade sofreu uma profunda transformação. Passou de objetos materiais para uma ideia radicalmente abstrata que, além disso, complexificou a relação mental e emocional entre a incomensurável divindade propriamente dita, o Deus do céu, e a materialidade dos seus messias enviados à terra, chamem-se eles Abraão, Moisés, Jesus Cristo ou Maomé.
Ao longo dos seus muitos séculos de existência, essas tradições religiosas monoteístas reveladas foram fundamentais no desenvolvimento, nas respetivas sociedades, do pensamento abstrato, conceptual ou intelectual também porque essa conceção de divindade, desde a génese, manteve-se umbilicalmente filiada à natureza transcendental da palavra escrita, à adoração do livro sagrado, fosse o Antigo Testamento, a Tora, o Novo Testamento, o Alcorão ou a Suna.
Ainda que os povos dessas tradições religiosas mantivessem por séculos, em maior ou menor grau, níveis de literacia e de escolarização residuais, a religião monoteísta revelada espoletou neles o pensamento abstrato associado à sacralização e ao esforço de compreensão da palavra escrita, uma e outra fundamentais na crença na universalidade da condição humana (somos todos filhos de um mesmo Deus) e no desenvolvimento da consciência humana (esse Deus vigia-me em toda a parte a tempo inteiro) que, depois, se foi sedimentando e evoluindo ao longo de séculos, mantendo os judeus a primazia nesse percurso histórico.
Mesmo quando as sociedades se laicizam, essas tradições não desaparecem, reinventam-se, uma vez que nenhuma sociedade é gerada do nada, antes vai transformando o velho num novo original e o novo num velho original.
Se descontarmos as diásporas de escravos que anteciparam, de algum modo, o processo à medida da sua conversão ao cristianismo, até pelo menos aos inícios do século XX, as crenças tradicionais africanas circunscreviam o olhar sobre o sagrado ao pensamento concreto.
Por seu lado, as tradições africanas, que condicionam a identidade racial negra, seguiram uma lógica profundamente distinta em todo esse período milenar, o que se reflete necessariamente nas tendências dos resultados escolares atuais. Se descontarmos as diásporas de escravos que anteciparam, de algum modo, o processo à medida da sua conversão ao cristianismo, até pelo menos aos inícios do século XX, as crenças tradicionais africanas circunscreviam o olhar sobre o sagrado ao pensamento concreto. Aquele estava associado ao culto de objetos, a uma ideia material da divindade exterior ao sujeito, ao culto dos antepassados da linhagem enterrados na terra comunitária.
Em termos metafóricos, existe uma diferença profunda no desenvolvimento do pensamento entre aqueles que procuram, geração após geração, um sentido para o seu destino no incomensurável céu onde está o seu Deus abstrato e aqueles que procuram, também geração após geração, o mesmo porém olhando para a terra concreta onde repousam os seus antepassados. É pouco provável que os últimos desenvolvam o pensamento abstrato, assim como é pouco provável que desenvolvam a autoconsciência da complexidade e universalidade da condição humana, com todos os aspetos morais, filosóficos, científicos, sociais, económicos, existenciais a ela associados que foram instituindo, ao longo de muitos séculos, o mundo ocidental.
Além disso, sendo o ensino organizado em torno da escrita e do cálculo abstrato, uma tradição civilizacional milenar que não as desenvolveu não consegue sacralizar a relação com o livro ou com o pensamento abstrato e, portanto, a apetência para o investimento pessoal e familiar em atividades intelectuais que as sociedades contemporâneas valorizam tende a ser menor. Mais. Tudo isso implicou a progressiva complexificação dos idiomas, característica que as identidades negras não desenvolveram por si mesmas até perfilharem, desde o século XX, os idiomas ocidentais dos antigos colonizadores, mais uma vez um processo em que a diáspora negra escrava se antecipou.
Claro que isso comprova que indivíduos, comunidades e povos descendentes de tradições politeístas animistas não-escritas até ao passado recente possuem todas as condições para renovar e reinventar as suas heranças milenares no presente e no futuro. Todavia, em termos de adaptação coletiva, não se pode apagar por decreto antirracista, em favor dos africanos, diferenças no domínio do pensamento com consequências nas atitudes e comportamentos quotidianos entre o que se iniciou há cerca de um século e o que, no caso dos judeus, teve início há mais de três milénios (a sucessão de prémios Nobel não é acidental) e, no caso dos ocidentais, há mais de dois milénios.
Portanto, o insucesso escolar de certas minorias dificilmente pode ser, direta ou indiretamente, explicável através do racismo sistémico ou racismo institucional. De resto, o esforço notável dos docentes e dos sistemas de ensino ocidentais no último meio século em favor das minorias raciais é merecedor de todos os elogios, e rogo para que se fartem de críticas, de estudos sociológicos e de abusos ideológicos e políticos viciados nos seus pressupostos.
O branco é mau, é polícia, o negro é bom, é ladrão: o inconsciente não engana.
Caro leitor, por ter sido trabalhosa e longa, a minha autoterapia racial foi recheada de detalhes, mas o rol de recomendações amigas que lhe faço já é longo e este ensaio tem de ter um fim, pois nem o racismo foi eterno. Tratemos de um último aspeto, o olhar sobre as minorias raciais como vítimas e sobre as maiorias raciais do mundo ocidental como agressoras.
O óbvio é que as tendências da violência e da criminalidade negra ou cigana, comparativamente à branca, subvertem categoricamente essa apreciação. A contradição entre a manipulação de discursos e imagens e os dados estatísticos objetivos, por seu lado associados à sensibilidade quotidiana de senso comum, são de tal ordem que a dissonância cognitiva gerada chega e sobra para a recusa liminar da vigarice sistémica antirracista.
Assinalo que as atitudes e comportamentos disruptivos referidos são também salientes nas sociedades do continente-mãe negro, África, e cresceram de modo exponencial quanto mais os africanos, após as independências, se distanciaram dos padrões morais e civilizacionais impostos pelos antigos colonos europeus brancos. Não me reporto apenas às guerras civis pós-coloniais e à sua crueldade desumana que os bem-pensantes escamoteiam, mas também à violência social e criminal que se propagaram na vida quotidiana como nunca acontecera na era colonial anterior.
Se é indesmentível que, na atualidade, as identidades brancas, de matriz ocidental, e as identidades negras, de matriz africana, reagem com tendências distintas no respeito pela dignidade humana e no respeito pela propriedade individual, importa buscar as razões nas respetivas tradições civilizacionais milenares, no sentido de se compreender se estas sedimentaram ou não sedimentaram no senso comum interditos morais na relação de indivíduos e comunidades com a vida (não matar) e com a propriedade (não roubar), dois referentes fundamentais na regulação das sociedades que dependem acima de tudo do inconsciente e do consciente individual e coletivo.
Na sequência da tradição judaica, com o advento do cristianismo no mundo ocidental os indivíduos passaram a ser representados como propriedade de Deus e, por isso, a escravatura entre cristãos tornou-se ilegítima. Esse avanço moral reforçou a tradição clássica ateniense que fundou o ideal de democracia a partir de princípio da igualdade entre os cidadãos que, embora não tivesse suprimido a escravatura, gerou um olhar mais digno sobre a condição também humana do escravo que, nos séculos seguintes, o cristianismo haveria de confirmar.
Assim sendo, a sedimentação da crença cristã na idade média (séculos V-XV) não só reforçou o ideal do respeito pela condição humana do outro com o qual se partilhava a fé e o quotidiano (a regra monástica beneditina de interdição dos banhos aos monges, a não ser em condições excecionais, sinalizou a sacralização do corpo humano e o princípio da inviolabilidade do mesmo), como desviou o ideal de propriedade do indivíduo para a posse da terra renovando a tradição do poder territorial romano, porém suprimindo a legitimidade escravatura enquanto prática recorrente. Daí ter surgido o feudalismo que colocava a posse da terra no âmago da regulação da vida profana (a parte humana da alma era da exclusiva responsabilidade do sagrado, o que favoreceu a autonomia institucional da igreja), sistema do qual derivou o princípio do estado territorial nacional centralizado de tipo europeu.
Portanto, o ideal de propriedade e dos demais sistemas de produção da riqueza passaram a incidir acima de tudo na posse da terra e, através dela, sobre a força de trabalho, e não mais diretamente sobre o indivíduo na qualidade de filho do Deus de todos.
A questão da inquisição ou a da escravatura negra, tal como mais tarde a questão do racismo, foram ultrapassadas porque traduzidas em avanços morais e sociais irreversíveis em resultado das pressões internas das próprias sociedades ocidentais.
Com os Descobrimentos e a Expansão Europeia iniciados nos séculos XV-XVI, a escravatura teve um novo impulso, mas incidindo sobre o outro desconhecido, sobre o diferente, o não-cristão, o negro. Todavia, a tradição judaico-cristã e filosófica não se desfez, pelo contrário. Daí que em todo o período histórico que se sucedeu, o Ocidente nunca deixou de viver em tensão entre os valores morais universais de matriz judaico-cristã e filosófica civilizacionalmente sedimentados e a vida prática quotidiana, incluindo as atividades económicas, que em determinados aspetos contradizia esses mesmos valores, constituindo a inquisição e sobretudo escravatura negra os mais moralmente embaraçosos.
Segundo Dinesh D’Souza, foi justamente porque a tensão entre a moral abstrata e as práticas concretas nunca foi resolvida, e por existir essa consciência religiosa e intelectual, que a renovação dos sistemas sociais e políticos no mundo ocidental se tornou extraordinariamente dinâmica e fértil, sem paralelo em relação a quaisquer outras civilizações suas contemporâneas. Com isso, a questão da inquisição ou a da escravatura negra, tal como mais tarde a questão do racismo, foram ultrapassadas porque traduzidas em avanços morais e sociais irreversíveis em resultado das pressões internas das próprias sociedades ocidentais.
Caro leitor, abusei da sua paciência para que possa avaliar, por si mesmo, por onde anda o racismo sistémico ou racismo institucional quando se discute a violência e o crime na atualidade detetáveis no engodo carnavalesco, espraiado numa comunicação social dominada por cabeças-de-vento, que joga as culpas no polícia branco quando, de facto, está a condenar toda a civilização ocidental de tradição milenar branca para se poder escamotear a natureza da civilização africana de tradição milenar negra. Nada mais eficaz do que trocar o lugar moral do polícia, o lugar da autoridade e da ordem, pelo lugar imoral do criminoso, o lugar do instigador da anomia social e da inviabilidade da vida coletiva tranquila, decente, próspera, civilizada. Independentemente de estarem envolvidos brancos, negros, ciganos ou quaisquer outras pertenças raciais ou étnicas, espero que você passe a rejeitar liminarmente tamanha vigarice antirracista.
A identidade negra deriva de uma outra tradição milenar inconfundível. Até à colonização europeia efetiva de África, em finais do século XIX, a longuíssima tradição africana persistiu no ideal de estado social ou de poder social, isto é, o poder incidia diretamente sobre as pessoas, o que as remetia para o rol do ideal de propriedade, constituído a posse e exploração da terra um atributo relativo ou secundário, daí que a tradição de fronteiras territoriais fixas não se tenha desenvolvido em África.
Quando a tradição milenar do exercício do poder não distingue os objetos (as coisas) dos sujeitos (os indivíduos), com muito maior facilidade os últimos são representados como negociáveis, isto é, vender alguém com quem se partilha atributos identitários na qualidade de escravo não constitui, necessariamente, um atropelo moral. Esse constitui um referente civilizacional fundamental que diferenciava a tradição africana da tradição ocidental à entrada do século XX.
Bonga, senhor da guerra africano da segunda metade do século XIX do vale do rio Zambeze, ainda pendurava as cabeças dos seus inimigos mortos nas estacas que demarcavam a sua aringa, algo impensável no Ocidente à época, mesmo no contexto de guerras civis violentas em que a condição humana foi maltratada, como a norte-americana (1861-1865).
Não é por acaso que o início da presença efetiva de europeus em África teve duas consequências. Fazer transitar o princípio do estado social ou do poder social africano para o princípio, há muito sedimentado no Ocidente, do estado territorial centralizado. Foi isso que levou à demarcação de fronteiras territoriais pelas potências europeias colonizadoras, ainda que à época, entre finais do século XIX e inícios do século XX, talhadas a régua e esquadro com o significado que isso teve, porém o princípio ficou. A segunda consequência foi o fim definitivo da escravatura negra porque foi renovada a ideia de estado, por seu lado filiada ao propósito da cristianização progressiva dos africanos, ambos incompatíveis com aquela prática.
Daí resultou um substancial impulso moral e civilizacional para África e para as suas tradições, mesmo que a escravatura tivesse sido substituída pelo trabalho forçado que, na substância, não era diferente das corveias da idade média e demais obrigações impostas aos camponeses pelo regime feudal. E mesmo que a definição de fronteiras tenha provocado alguma instabilidade, isso não quer dizer necessariamente que antes reinavam a paz e a concórdia entre os africanos. Roma e Pavia não se fizeram num dia.
Neste momento, o estimado leitor já pode antecipar que essas explicações irão desembocar na refutação de acusações segundo as quais a violência e da criminalidade salientes em certas minorias derivarem do racismo praticado pelas populações brancas ocidentais.
Ideais de respeito pela condição humana e pela propriedade individual conquistados por determinadas tradições civilizacionais num passado muito recente explicam atropelos facilitados dos interditos morais que protegem esses objetos de atitude na vida quotidiana, quer nas sociedades africanas, quer nas diásporas negras que dela derivam. Daí resultam, desse modo, diferenças ainda substantivas hoje comparativamente a tradições das populações autóctones da Europa e respetivas diásporas destas nas Américas ou na Oceania.
Os impactos da distopia marxista-leninista acabaram por ser mais acentuados em tradições e segmentos sociais nos quais a noção de propriedade individual e do dever de respeitá-la, enquanto valor moral e civilizacional, era mais recente, mais frágil e instável, como é o caso das identidades negras fixadas no mundo ocidental.
Como se a propensão mais saliente para a violência e para o crime em determinadas identidades raciais não fosse, em si, um desafio de monta derivado de heranças milenares, a forte propagação da distopia marxista-leninista, ao longo do século XX, agravou o problema por causa da instigação da rejeição social da legitimidade da propriedade individual da tradição ocidental em nome da defesa, estranha a essa mesma tradição, da propriedade coletiva dos meios de produção que, por seu lado, também era estranha à milenar propriedade comunitária dos africanos, uma vez que esta funcionava umbilicalmente filiada ao respetivo universo mágico-religioso ancestral, o que é o contrário da sentença marxista: a religião é o ópio do povo.
Os impactos da distopia marxista-leninista acabaram por ser, naturalmente, mais acentuados em tradições e segmentos sociais nos quais a noção de propriedade individual e do dever de respeitá-la, enquanto valor moral e civilizacional, era mais recente e, por isso, mais frágil e instável, como é o caso das identidades negras fixadas no mundo ocidental. Mesmo na África-mãe essa distopia rompeu com o que lá existia, por um lado, com a tradição da propriedade comunitária africana tradicional e, por outro lado, com a herança colonial europeia da propriedade individual de mercado. Em qualquer dos casos, a desregulação social instigada pelas crenças esquerdistas tem sido desastrosa com sintomas bem vivos no presente. Nada melhor do ofender a mais elementar inteligência alheia passando as culpas para o racismo dos brancos e para o Ocidente.
Nesta perspetiva, a pobreza e a discriminação não constituem as causas da frágil integração social e falta de prosperidade de certas identidades raciais minoritárias acolhidas no mundo ocidental, antes consequências da incapacidade dessas mesmas comunidades em gerirem o ideal de condição humana e o ideal de propriedade seguindo os padrões morais sedimentados no Ocidente, e que determinam o funcionamento das suas sociedades. Na substância, o ideal de propriedade e de justiça comunitário (por falta de tradição de submissão a um poder territorial centralizado) colocam a comunidade cigana num patamar que pode ser equiparável ao negro-africano, mas o meu conhecimento neste caso é limitado.
Como tenho insistido, as identidades sociais não são estáticas no decurso do tempo, transformam-se, o que certamente ocorrerá com a identidade negra. Porém, insisto, também não se ultrapassam tradições e diferenças históricas que persistiram ao longo de milhares de anos num mero par de gerações.
Mas é por essa razão que será fundamental que estes assuntos sejam discutidos com abertura no espaço público, como eu faço consigo neste momento, caro leitor. Certamente terá consciência de ser quase impossível que tal seja eficaz enquanto insistirmos em recorrer à carga afetiva negativa da palavra racismo, palavra que dificilmente deixará de ser um poderoso instrumento de silenciamento da liberdade de pensamento e de debate público, o que impede a busca genuína e persistente da verdade que faz de nós seres humanos decentes. Todos perdemos. Mestiços, negros, brancos e todos os outros para que uns quantos brinquem ao antirracismo. Inferno pior será difícil.
Claro que a violência e a criminalidade têm outras explicações e consequências associadas às tradições africanas que remetem para os ideais de dignidade humana e de propriedade. Reporto-me às consequências desumanas de certos rituais ancestrais ou da feitiçaria (como a excisão genital feminina ou o assassinato de albinos), às experiências de coletivização forçada do mundo rural pós-colonial que desembocaram em guerras civis violentas, à deslegitimação e usurpação agressiva da propriedade dos antigos colonos brancos que fez disparar, a prazo, corrupção ou a criminalidade e esta, por seu lado, explica o aparecimento na África pós-colonial de linchamentos populares, entre outros fenómenos. Mas isso são contas de outro rosário.
A mim e a si resta-nos o dever de rejeitar liminarmente a vigarice sistémica antirracista justamente porque as ideias que partilhamos neste ensaio jamais servirão propósitos de culpabilizar qualquer pertença racial – branca, negra ou as demais –, apenas ajudar a compreender os significados das suas existências e os desafios com que se confrontam na atualidade. Podemos e, sobretudo, devemos fazer muitíssimo mais e muitíssimo melhor pela verdade e dignidade de todos. Conto consigo, caro e paciente leitor!