Eu acho que isso não acontece só durante a guerra. Mas, “regra geral”, a insolência é uma defesa contra a vergonha. (Na guerra isso fica só mais claro…) E, bem vistas as coisas, a vaidade também. É verdade que, quando o mal se solta e se expande, a vergonha sossega muito mais. Porque ao pé dele não temos como não nos sentir melhores, recrutando, perante o pior dos outros, o orgulho daquilo que somos. Sermos melhores que os maus não significa que sejamos bons. Mas que não somos tão maus como eles. Seja como for, o mundo seria um lugar mais bonito se fôssemos mais verdadeiros diante das coisas que fazemos mal. Dos nossos remorsos. E da nossa vergonha. E se fôssemos capazes de pedir desculpa. De forma sentida. E de olhos nos olhos. A nós próprios. Mais vezes.

Mas, em tempo de guerra, se a primeira baixa é a verdade, a segunda será a vergonha. No lugar da vergonha (que parecemos confinar às crianças) a insolência é uma atitude sobranceira. E desafiadora. Incapaz de reconhecer a culpa, porque a projecta no outro, e o torna responsável daquilo que somos nós a fazer. Nenhum insolente é humilde. Nenhum é capaz de assumir o mal que fez. É por isso que a insolência, que mobiliza o cinismo, casa tão bem com quem se faz de vítima. Que embrulha o mal que se faz da mesma forma. A culpabilidade retrai-nos com remorsos pelo mal que fizemos. A vergonha aflora o “quanto baste” de humilhação com que o mal nos recorda que, afinal, não somos tão bons como supúnhamos ser. Mas diante da culpabilidade e da vergonha talvez sejamos quase todos mais cínicos do que supúnhamos ser. Quantos de nós somos capazes de pedir desculpa, de olhos nos olhos e de forma sentida, como exigimos que os nossos filhos o façam? Quantos de nós reconhecemos que dizer “lamento”, que é a forma cínica de não pedir desculpa, representa a nossa profunda dificuldade de reconhecer que errámos, trazendo o outro para a libertação dos nossos remorsos (quando lhe pedimos des-culpa; ou que nos livre da culpa)?

O que assusta mais, diante do mal, não será tanta que haja alguém (que continua a ser uma pessoa!) que o protagonize. Mas uma multidão que o subscreve. E pessoas, como nós, que o concretizam. Há, afinal, mais pessoas capazes de serem más do que imaginávamos existirem. Mesmo que, diante das maldades que fizeram, o melhor que encontram é justificarem que cumpriram ordens. Como se do mal que fazem se libertassem sem que peçam desculpa. O que assusta no mal é que os efeitos colaterais que ele aclara passa por trazer quem o justifique, como se o sofrimento dos outros lhe fosse alheio. E quem, por vezes, de forma emboscada, com a mesma falta de vergonha, se proteja das suas maldades, apontando as dos outros. Esquece-se, a quem falte a vergonha, que perder a face não é reconhecer o mal que se fez. Perder a face é fugir para a frente (todavia, fugir!) diante do mal que, a partir daí, o corrói e carcome. E o persegue. E destrói. Era mais fácil se, diante das coisas que fazemos mal, reabilitássemos a vergonha. Mesmo que ela nos pese. Porque reconhecê-la nos ajuda a sermos melhores. Reconhecemos as nossas maldades torna-nos melhores! Coisa que os maus, porque fogem de se ver ao espelho, parecem dar a entender que parece supérfluo.

A pressa com que vejo tantas pessoas a quererem explicar a guerra às crianças faz-me reagir mal. Hoje, talvez perceba melhor que isso talvez se deva à forma como acabamos por sentir vergonha do mal que os outros fazem, subscrevem ou justificam. E acabamos de não ser capazes de lhes dizer: “Sim, o pai (ou a mãe) sentem vergonha por exigirem que acredites na verdade e no bem e, depois, haja perguntas fundamentais diante das quais ficas sem resposta.”  O que é difícil de entender para os nossos filhos não é tanto a guerra. É, em primeiro lugar, que haja pessoas como os pais deles que sejam maus. E é, depois, difícil perceberem como é que uma pessoa se torna má. Será que os seus pais podem — eles, também — vir a ser maus? E, se for assim, podem crianças boas tornar-se pessoas más?

Na verdade, não há pessoas “sem vergonha”. Nem mesmo aquelas que têm “muita lata”, que é uma forma de lhes reconhecermos que não têm nem “um pingo de vergonha”. A vergonha existe em todos os que fazem mal. Mas nem todos são capazes de a reconhecer como parte si. É por isso que é mais fácil, diante do mal que se banaliza nas televisões, assumirmos a “vergonha-alheia”. Que, em boa verdade, nunca é alheia. É nossa, também. O que os nossos filhos precisam de saber é se temos vergonha por existirem pessoas capazes do mal. E se lhe dissermos que sim, que temos vergonha por haver pessoas más – quase como se lhes disséssemos: “Desculpa se te enganei, sem querer, quando te dei a entender que somos só bons!…” – estamos a dizer-lhes que, quanto melhores e mais verdadeiros formos para eles e eles para nós mais assumir a vergonha nos torna pessoas melhores. O que nos envergonha quando não pedimos desculpa não é tanto o quanto dói essa humilhação. É imaginarmos que não haja ninguém capaz de nos libertar desse remorso pelo que fizemos de mal. E, depois disso, haja quem não desista de gostar de nós. E – se for preciso – que goste mais, ainda, do que gostava, antes de termos sido verdadeiros diante do mal que tenhamos feito. De que é que se foge quando se foge da vergonha? Do desespero de descobrir que o mal nos terá deixado, irrespiravelmente, sós. Daí que, diante do mal, a resposta certa que podemos dar aos nossos filhos talvez seja: “Não escondas a vergonha por qualquer coisa má que faças. Porque as coisas más, mais que quaisquer outras, põem o nosso amor à prova”.

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