A tomada de consciência de um problema perturbador é, em saúde mental, um importante passo para a cura ou minimização das consequências. Interessa, assim, perceber que o desassossego crónico da mente, provocado por polémicas avulsas, não deixa espaço à constatação dos poderes invisíveis que nos subjugam. O timbre inflamado dos debates actuais, exige maior esforço de discernimento para manter a sanidade e atenção ao que verdadeiramente importa, especialmente neste momento de crise epidemiológica da Covid-19.

A vulnerabilidade psicossocial disparou com a diminuição dos rendimentos, com o aumento do desemprego, com a alteração das dinâmicas familiares e profissionais, factores que politizaram o vírus em arma de arremesso entre partidos e parceiros sociais. Nestas circunstâncias de instabilidade social, onde impera o medo e a imprevisibilidade, consolidam-se poderes atentos que usam a seu favor emoções colectivas sem que se dê por isso.

Assim, por nossa mão, e na razão das nossas preferências, ganham pujança quer a baba de caracol que nos amacia a pele, quer a política que nos governa, ou meios de comunicação e redes sociais que nos conformam as ideias, todos ao abrigo da natural liberdade da sociedade democrática. Somos livres sim, de escolher os poderes domadores da vontade que nos fazem sentir lisonjeados com a escolha, pois até nos parece produto da nossa brilhante sagacidade. Mas, afinal, como se instalam estas teias de comando que fazem o arresto da liberdade e determinam com subtileza aquilo que se faz, o que se come, o que se compra, e pior ainda, o que se pensa?

Michel Foucault (1926-1984) na sua obra “Microfísica do Poder” refere que a sociedade é um complexo de micro-relações de poderes disciplinares que visam controlar os indivíduos. A autoridade dissolvida nas instituições, empresas, quartéis, prisões, hospitais e outros organismos de confinamento, vigia, pune e molda comportamentos para que todos sejam produtivos na sociedade e sintam necessidade de ser-lhe útil. Não explicou, porém, o autor, a vigência de tanta inutilidade bem remunerada, numerosos cidadãos que invertem o sentido da premissa e colocam a sociedade a seu serviço.

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Neste contexto ambivalente da actual pandemia, enquanto uns tentam adaptar-se à realidade e “fazem pela vida” honestamente, outros, mais perspicazes, procuram melhores soluções e esquivam-se às dificuldades com apoios e financiamentos públicos sem outros esforços. Propaga-se com a Covid o sentimento de injustiça e, com ele, a doença mental manifesta em perturbações psíquicas e comportamentos disruptivos, iniciados dentro da noção de que o valor das pessoas depende cada vez menos das suas reais capacidades e cada vez mais dos interesses do poder, um conceito abstracto que reúne a ideia de persuasão, controle e regulação na capacidade de mobilizar forças económicas, sociais ou políticas para obter certo resultado.

A capacidade de influenciar é o mais importante requisito para o domínio de algo ou de alguém, demasiado explorada por influencers, políticos, coaches, gurus e outros, na mobilização das opiniões e escolhas que sustentam o poder – o “Santo Graal”. Quem dele beber ganha vida e vigor, mas tende à dependência em níveis de adição possivelmente incuráveis e cuja privação causa convulsões como a abstinência alcoólica.

O desespero pelas mordomias do poder é, naturalmente, a origem de comportamentos corruptos, impróprios de tantos líderes que tendo obrigação de ser exemplo de integridade, tudo, mas tudo fazem, para manter cargos e títulos, fazendo crer que a ética é um conceito bolorento fora de moda e o que importa é a canalização do “rebanho” para as ideias, palestras de motivação, negócios e propósitos dos “pastores”.

Depois, o debate dito público transforma-se em programas de entretenimento, campanhas de marketing pessoal à procura da honra perdida, e, no seio de tanto alarido, actores com responsabilidade social e direito a “tempo de antena” perdem-se das verdadeiras questões, entre elas, todas as que espelham a tendência portuguesa à gestão de improviso, resposta ao “sintoma”, ao “prejuízo”, verificada logo no topo administrativo com o tradicional deficit de controle e fiscalização das próprias orientações, e a Covid serve agora de justificativa a velhas ineficiências.

Grandes têm sido os esforços para conter a pandemia, observam-se, no entanto, múltiplas arestas a limar. Tão importante como “testar…testar”, é preciso educar…educar população e entidades inutilmente estagnadas, que oscilam entre o pânico e a impaciência por voltar à vida normal. Talvez não bastem cuidados aos infectados e testes em massa nos surtos, seria sensato colmatar, a montante, a insuficiência das estratégias preventivas no geral e, em particular, ampliar o controle e vigilância das condições sanitárias, planos de contingência, dotação e formação de pessoal nos lares, hospitais, escolas e outros organismos públicos, dando forma a esquemas sustentados de prevenção em saúde, não só para a Covid, mas para outros agentes patogénicos.

Aguardamos expectantes, com esperança, melhor resposta às necessidades, anunciada no “Plano da Saúde para o Outono-Inverno 2020-21”, já que o plano Primavera-Verão, carente de determinação, deixou a todos dúvidas sobre procedimentos a adoptar e não respondeu à população idosa e outros vulneráveis, que por todo o país recorreram ao centro de saúde, mas encontraram a porta fechada e atendimento por email. Note-se o grau de iliteracia informática da população mais velha e a inacessibilidade de muitos a um computador.

Estejamos conscientes o quanto nos escapam estes e outros temas substanciais e o quanto nos ocupam futilidades orquestradas por inumeráveis poderes, das redes sociais predadoras da mente ao Lifestyle, do entretenimento ao desporto. Interessados na moral de rebanho, afirmam-se no comportamento morno, acomodado e irrefletido sobre os valores dominantes (A Genealogia da Moral, Friedrich Nietzsche,1844-1900). Abre-se mão da liberdade quando se abdica de analisar com responsabilidade o meio que nos rodeia, a começar por nós próprios. Devemos exigir mudança, mas, essencialmente, rejeitar influências lideradas por poderes que insistem na transformação do sujeito em objecto. A servidão é tranquila, pode dar até mais prazer que a liberdade. É necessário esforço para contrariar a “psicologia” do “rebanho” e fugir de “pastores”.