Há um género de livros que eu compro sempre: as memórias de pessoas que (preferencialmente escrevendo com talento) contam as histórias de vida, as atribulações, as relações, os desânimos e as valentias, os sucessos e os falhanços com estrondo, com os tempos que viveram em pano de fundo. E se esses tempos são marcos da História, tanto melhor. A jovem mãe que, vivendo a sul de Londres durante a Segunda Guerra Mundial, se protege, e à filha recém-nascida, debaixo da cama de hospital quando se aproximam as bombas V1, e que amamenta sempre na cave da sua casa para não interromper a alimentação da filha com deslocações para os abrigos quando há sinal de bombardeamento; Somerset Maugham contando a sua viagem pela Birmânia e Indochina; a filha do último vice-rei da Índia descrevendo a vida da família Mountbatten (e o triângulo amoroso dos Mountbatten com Nehru) nos tempos do nascimento da Índia e do Paquistão. Sim, gosto de ler as histórias dos indivíduos no turbilhão da História.
Li há uns tempos uma destas memórias, Life and Death in Shanghai, de Nien Cheng, que conta as desventuras da autora durante a Revolução Cultural chinesa. Nien Cheng foi uma mulher inteligente, culta, com hábitos elegantes e dispendiosos (que a China maoísta evidentemente não lhe perdoou), estudou em Londres e viveu na Austrália (antes de voltar com o marido para a China, respondendo ao chamamento dos políticos para que os imigrantes chineses letrados regressassem ao país). Era também dona de um temperamento desafiador (e pagou caro por ele, ainda que seja um regalo ler os efeitos desse temperamento) e de um desdém profundo – e snob – pela maioria dos quadros do Partido Comunista Chinês, que reputava de ignorantes, brutos, inferiores. Aquilo que no confucionismo se chama xiaoren, literalmente ‘homens pequenos’.
Este livro tem-me vindo muito à memória por estes dias. É que, apesar de Nien Cheng verter veneno abundante sobre Mao e sus muchachos, elogia com fartura Zhou Enlai e Deng Xiaoping, que via como competentes, compassivos, moderados. Lá pelo livro a autora dá conta das cerimónias espontâneas de luto pela morte de Zhou Enlai em 1976. Houve ajuntamentos de milhares de pessoas na praça com o nome poético de Portas da Paz Celestial. Em homenagem a Zhou, tido como um reduto de humanidade no meio da crueldade da Revolução Cultural (apesar da historiografia recente lhe atribuir um papel mais ambíguo, que na História chinesa nunca há falta de cinzentos), e manifestando apoio a Deng (purgado e reabilitado, à vez, por Mao) como o sucessor desejado de Zhou. Duraram dias estas manifestações populares, escaparam ao controlo do PCC e lá tiveram as autoridades de desimpedir a praça usando a força contra os manifestantes. (Rings a bell, não?)
As memórias de Nien Cheng (de 86), como se vê, são datadas: depois de 4 de junho de 1989, quando Deng Xiaoping concordou em enviar os militares para dispersar os estudantes que protestavam na mesma Tiananmen, com tanques e balas e matando uma quantidade incerta, tornou-se impossível elogiar tanto a moderação de Deng. Porque Deng Xiaoping, o líder que obteve legitimidade popular nas manifestações de Tiananmen em 76 para reclamar o poder político depois da morte de Mao, ficou para sempre maculado pela violência e pelas mortes de Tiananmen em 89. Ninguém pode acusar a história chinesa de não fazer uso da ironia.
Agora que se comemoram – menos na China – os 25 anos da supressão violenta dos protestos dos estudantes em Tiananmen (e em muitas praças emblemáticas de outras cidades espalhadas pela China, que os protestos de estudantes não foram exclusivos da capital), o PCC aparentemente ganhou. Um batalhão de polícias digitais varre diariamente tudo o que se publica na internet na China, para apagar qualquer referência a Tiananmen. Para a história oficial, é como se os protestos e a sua supressão não tivessem existido. As gerações nascidas nos anos 80 e 90 foram educadas para serem – e são – nacionalistas e agradecidas pela prosperidade económica. Livros que refiram os protestos não são publicados. E os chineses, como conta Yu Hua, o meu escritor chinês preferido, depois de Tiananmen pararam de se preocupar com os direitos políticos e trataram de ganhar dinheiro. Parece que Tiananmen desapareceu e perdeu o seu poder.
E, no entanto, não. O PCC teme tanto o símbolo Tiananmen que patrulha ameaçadoramente tudo o que possa soar a comemoração dos protestos e tem até prendido intelectuais para desincentivar os ousados. Mas os jovens chineses cada vez mais têm contacto com países onde a informação circula livremente. As alusões veladas ao 4 de junho multiplicam-se na net. E aqui e ali um professor conta aos alunos o que aconteceu em 89.
Vem desde Freud: os traumas apagados da memória regressam sempre para nos assombrar.