“Sem me querer substituir à Justiça, não posso deixar de partilhar com os meus concidadãos que a apreensão de envelopes de dinheiro no gabinete de uma pessoa que escolhi para comigo trabalhar, mais do que magoar pela confiança traída, envergonha-me perante os portugueses e aos portugueses peço desculpa.”
António Costa, 7 de novembro de 2023, conferência de imprensa
“Houve factos novos que podiam ter contribuído seriamente para que tivesse tomado esta decisão independentemente do comunicado”
António Costa, 11 de dezembro de 2023, CNN Portugal
“Podem ter-me derrubado, mas não me derrotaram”
António Costa, 5 de janeiro de 2024, Congresso do PS
Passaram-se 70 dias desde que António Costa apresentou a demissão. E, em menos de três meses, António Costa passou de pedir desculpas ao país para dizer, com todas as letras e aproveitando o palco privilegiado do congresso socialista, que foi derrubado. Derrubado pelo tenebroso Ministério Público, pela obscura direita, pelo irresponsável Presidente da República. Derrubado por todos menos por João Galamba, ministro que segurou para lá do razoável, Lacerda Machado, “amigo” que promoveu formal e informalmente até ao limite do aconselhável, e Vítor Escária, chefe de gabinete que escolheu apesar do currículo politicamente duvidoso e que acabou a esconder 75 mil euros na residência oficial do primeiro-ministro.
A ideia de que António Costa caiu por causa de um parágrafo – tese que o próprio (!) desmontou na entrevista que deu à CNN, ao assumir que, com ou sem parágrafo, provavelmente se demitiria por causa do dinheiro encontrado em São Bento – não seria particularmente dramática se fosse só uma ideia de António Costa. Afinal, como disse Costa sobre José Sócrates, cada um tem direito a “lutar por aquilo que acredita ser a sua verdade”. Esta ideia só passa a ser uma questão relevante quando alguns dos principais rostos do PS acreditam na verdade de António Costa. Augusto Santos Silva, Carlos César, Duarte Cordeiro, Vieira da Silva, João Torres ou Ascenso Simões, por exemplo, aproveitaram o mesmíssimo congresso para encontrar os responsáveis pelo desbaratar da tão procurada maioria absoluta – todos, menos António Costa.
No mais esclarecido e esclarecedor discurso daquele congresso, Francisco Assis, elevado a guia espiritual do pedronunismo, teve de pedir ao PS que não fizesse uma campanha dominada pelo “medo” e pelo “ressentimento”. Aparentemente, Pedro Nuno Santos parece ter dar dado ouvidos a Assis – o novo líder socialista percebeu rapidamente que ter uma parte muito relevante do partido a carpir as mágoas de António Costa, atrelado ao passado e ao ressentimento, é, além de um evidente embaraço para quem quer fugir da sombra do antecessor, um erro tremendo para quem quer ganhar eleições.
Além disso, mesmo que involuntariamente, Pedro Nuno Santos é um beneficiário líquido da crise política provocada (também) pelas decisões de António Costa. Foi assim, afinal, que chegou a candidato a primeiro-ministro. Alinhar na tese de que a queda do PS foi uma tremenda maldade alheia seria assumir-se como um candidato ilegítimo, nascido por obra e graça de um golpe palaciano dirigido contra António Costa. Pedro Nuno Santos não quererá isso, naturalmente. Por pura tática ou profunda convicção, dele não se ouviu uma palavra que fosse a atacar o Ministério Público ou uma única crítica dirigida a Marcelo Rebelo de Sousa. “Temos de separar a opinião individual da que é a opinião do PS”, disse o novo líder do PS à saída do encontro com Marcelo Rebelo de Sousa, em Belém. O costismo ficou a falar sozinho.
Mas o novo líder socialista percebeu que é preciso fazer mais do que não se queixar – é preciso assumir responsabilidades. Se António Costa se despediu do fato de secretário-geral socialista a dizer que “melhor do que o PS, só o PS”, Pedro Nuno Santos apareceu diante das câmaras a dizer que o PS, afinal, pode não ter feito as coisas assim tão maravilhosamente bem. “Temos de nos apresentar com humildade. Há portugueses que estão descontentes e zangados, que têm uma vida que não ata nem desata. A culpa não é de quem se afastou de nós.”
Os mais cínicos dirão que tudo não passa de uma operação cosmética, que Pedro Nuno Santos não acredita em metade do que diz, que continua a olhar para o país pelas lentes de António Costa e a entender que os portugueses deveriam estar agradecidos pelo privilégio de serem liderados pelo PS. Num partido que ainda hoje tem dificuldades em assumir que as escolhas que fez conduziram à intervenção da troika em Portugal, e que continua a culpar Pedro Passos Coelho por tudo o que vai de mal no país, esta aparente humildade até pode ser só isso mesmo, uma operação de cosmética, uma tremenda cara de pau para quem fez parte de sete dos últimos oito anos de governação. Mas, enquanto estratégia política, comportar-se como o adulto na sala do PS, assumir responsabilidades, prometer corrigir os erros e não fabricar culpados pode ser eficaz.
Pedro Nuno Santos talvez tenha reconhecido (veremos o que faz ao longo da campanha) que há um país zangado com o PS (e com o centro moderado). Que não basta gritar “Passos”, chamar “fascista” a tudo o que mexe e pôr a mão no peito pelos “valores de Abril” para convencer os eleitores a darem nova oportunidade aos socialistas. A direita, que continua a combater a caricatura que desenhou de Pedro Nuno Santos e não “o” candidato Pedro Nuno Santos, ainda não percebeu que subestimar a capacidade do sucessor de António Costa é um erro de palmatória. Reduzi-lo ao tipo da TAP, ao fantasma de Vasco Gonçalves ou ao “neto de sapateiro” que conduziu um Maserati é coisa pouca. Não mobiliza nem dá esperança a ninguém.