Depois da morte, ressurreição e ascensão de Jesus ao Céu, Pedro assumiu as funções de primeiro Papa, para as quais tinha sido escolhido por Cristo (Mt 16, 18).
No princípio da Igreja, abundavam, segundo Lucas, os textos sobre Jesus de Nazaré (Lc 1, 1-2). Ante esta profusão de relatos, Pedro competia, como primeiro Papa, estabelecer o texto oficial da Sagrada Escritura e podia aproveitar a ocasião para retirar tudo o que dele se escreveu no Novo Testamento e não abona a seu favor e que, por sinal, não era pouco. Senão, vejamos.
Mateus, ao relatar o primeiro anúncio que Jesus fez da sua paixão e morte na cruz, afirma que o Mestre disse a Pedro: “Afasta-te de mim, Satanás! Tu serves-me de escândalo, porque não tens a sabedoria das coisas de Deus, mas dos homens” (Mt 16, 23)! Ora, como poderiam os primeiros cristãos obedecer a um Papa a quem o Senhor chamou Satanás?! Ao afirmar que o primeiro Papa não tinha “a sabedoria das coisas de Deus, mas dos homens”, Jesus pôs em cheque a autoridade doutrinal do primeiro Papa: quem obedeceria a alguém que Cristo disse não ter “a sabedoria das coisas de Deus”?!
O evangelista Marcos recolhe boa parte da pregação oral de Simão Pedro, mas também refere a sua tripla negação (Mc 14, 66-72), que não era nada edificante para os fiéis que, conhecendo-a, se escandalizariam. Ora, não sendo este episódio essencial à história da salvação, seria lógica e prudente a sua eliminação do Novo Testamento.
O terceiro Evangelho sinóptico é atribuído a Lucas que, como Marcos, também não fazia parte do grupo dos doze apóstolos. Este evangelista, no episódio da primeira pesca milagrosa, disse que Pedro se lançou “aos pés de Jesus, dizendo: Retira-te de mim, Senhor, pois eu sou um homem pecador.” (Lc 5, 8). Ora, não fica bem que um Papa se lance aos pés de alguém, nem muito menos que se tenha reconhecido, publicamente, como “um homem pecador”!
O quarto Evangelho é da autoria do apóstolo João, o discípulo adolescente e, talvez por isso, o preferido de Jesus. É o texto mais teológico e o mais poético também, sobretudo o seu prólogo, onde se confessa a divindade de Jesus, a quem se dá o nome de Verbo. Mas, quando João disse que tanto ele como Pedro correram para o santo sepulcro, na manhã da ressurreição do Senhor, acrescentou que corriam “ambos juntos, mas o outro discípulo” – ou seja, ele João – “corria mais do que Pedro, e chegou primeiro ao sepulcro” (Jo 20, 4). Mesmo sendo verdade, está a mais a gabarolice do jovem apóstolo, que se orgulha desta sua proeza desportiva, deixando mal Pedro, que chegou em último lugar. Como se isto não bastasse, João é também o único evangelista que afirma que Pedro não permitiu que o Mestre lhe lavasse os pés, o que leva a crer que os tinha mais sujos do que os outros apóstolos, e que depois se desdisse, pedindo-lhe que lavasse não somente os pés, “mas também as mãos e a cabeça” (Jo 13, 6-9)! Ora, isto leva a pensar que Pedro era bastante contraditório e que devia ter as mãos e a cabeça bastante sujas, o que também não o favorece.
Paulo é autor de várias epístolas do Novo Testamento. As suas cartas são magníficas, mas, na epístola aos gálatas, escreve que fez frente a Pedro, já Papa, porque este, ao não querer conviver com os gentios, “merecia repreensão” (Gl 2, 11-14). Ora, não é isto um péssimo exemplo para todos os fiéis, que devem obediência e veneração ao Santo Padre?! Além disso, Saulo não era a pessoa indicada para corrigir publicamente Pedro porque, quando aquele ainda perseguia os cristãos – participou activamente no martírio de Santo Estêvão, um dos primeiros sete diáconos da Igreja – já Pedro era Papa!
Se não restavam dúvidas quanto à possibilidade e conveniência de eliminar do Novo Testamento os episódios referidos por Mateus, Marcos, Lucas, João e Paulo, porque tal não aconteceu?! O primeiro Papa tinha o maior interesse pessoal e todo o poder necessário para mandar executar essa ordem, que era até do maior bom senso. Se o tivesse feito, os Evangelhos não ficariam gravemente prejudicados, porque as referências negativas a Pedro são marginais ao relato da vida e milagres de Jesus Cristo. Por último, essas omissões não ofenderiam a verdade – os Evangelhos não têm a pretensão de dizer tudo o que Jesus fez e ensinou (Jo 20, 30) – e seriam inteiramente justificadas por uma evidente razão de conveniência, não apenas eclesial, mas também universal.
Com efeito, teria sido muito oportuno que os primeiros cristãos, a quem se pedia a coragem do martírio, não tivessem uma fraca imagem do seu primeiro Papa, que sabiam escolhido por Cristo para essa função e a que todos os fiéis deviam obediência. Também para os pagãos, em tempos de grandes contradições, era necessário que o máximo representante eclesial fosse fidedigno, até porque era o seu testemunho sobre a ressurreição de Jesus que credibilizava a fé cristã. Mas, como crer em alguém que Jesus identificou como sendo Satanás e disse não ter a sabedoria de Deus?! Como acreditar num apóstolo que, embora avisado da sua tripla negação, por três vezes negou o Mestre?!
Todas estas razões, e as mais que se poderiam alegar, aconselhavam a escolha de outro apóstolo para primeiro Papa – João, o discípulo preferido do Mestre, era o candidato ideal! – ou, pelo menos, a retirada de todos os episódios que difamam a imagem de Pedro.
Se esta é a sabedoria dos homens, outra é a sabedoria de Deus, autor principal da Sagrada Escritura. Jesus não escolheu Simão porque ignorasse os seus defeitos e pecados, mas, por incrível que pareça, porque os conhecia ao ponto de os prever (Mt 26, 33-35), para que assim se manifestasse o seu poder e misericórdia. Se tivesse escolhido um homem perfeito, os cristãos poderiam pensar que, por causa das suas faltas, não se poderiam salvar, nem teriam lugar na Igreja. Ora “Deus não enviou o seu Filho ao mundo, para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (Jo 3, 17). Ele não veio “chamar os justos, mas os pecadores” (Lc 5, 32).
“As coisas loucas, segundo o mundo, escolheu-as Deus para confundir os sábios, e as coisas fracas, segundo o mundo, escolheu-as Deus para confundir os fortes; Deus escolheu as coisas vis e desprezíveis, segundo o mundo, e aqueles que não são, para destruir as que são, para que nenhuma criatura se glorie diante dele” (1Cr 1, 27-29). Que homens bons façam uma coisa boa é natural, mas que homens tão fracos como os doze e, em especial, Pedro sejam protagonistas de uma tão incrível aventura só se pode explicar por um desígnio sobrenatural.