ao Padre Duarte da Cunha

1  Tudo era intenso. E muitas vezes desconcertantemente inesperado. Uma simples conversa tanto desaguava numa discussão apaixonada como em amável sintonia; num rio de surpresa ou num poço de tumulto; ora se espraiava num mar de humor, ora afogava o próprio verbo em polémica. Numa só tirada podia acontecer lhe protagonizar tudo isto.

Personalidade brilhante e vibrante, conversador irresistível, intelectual cultíssimo, inquieto e irrequieto, arguto e velozmente activo, era um homem de Deus. E era controverso Deo gratias, que os conformados e conformistas nunca buscarão nada e ele nunca fez outra coisa senão buscar o transcendente e segui-lo para O dar a conhecer, divulgar e partilhar. De maneira sui generis claro e falo de João Seabra. E do rumo que testemunhei , anos fora, sempre o mesmo e firmíssimo nas premissas fundamentais que o constituíam (e definiam): seriedade intelectual, vivência quotidiana da caridade, fé que remove montanhas e a dele removia. Tinha pressa, sabia a missão vasta.

Sim, falo de João Seabra e também posso bem com a controvérsia. A que ele gerava – era parte constitutiva de si mesmo – e a outra: a que se exagerava (ou mesmo a que por vezes se encomendava a seu respeito) e que eu tentava, com ou sem sucesso, desconstruir.

Nascido há setenta e dois anos, e padre desde 1978 — ordenou-se aos 29 anos –, começou por detestar a ideia de se encafuar num seminário, não queria “ir para padre”. Acabara de cursar Direito, era muito novo, tomava conta das conversas, namorava, tinha amigos que adorava e com quem se perdia num constante fazer e refazer da pátria, mas encafuou-se num seminário: percebeu Deus ganhara esse combate entre o mundo e o que transcende o mundo. Acontece aos escolhidos. No que lhe dizia respeito, ele fora “escolhido” entre muitos dos chamados. Fora pessoalmente pescado à linha. À revelia de si próprio.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

2 Na missa onde fui juntar-me a João Seabra – ele lá em cima, eu cá em baixo, num banco do Colégio S. Tomás – o que num sopro veio ter comigo foi o que ouvira a D. Manuel Clemente, cinco dias antes, no lançamento do seu último livro* na Universidade Católica, sobre a invulgar capacidade de regeneração do catolicismo português ao longo do tempo, face à adversidade. Tema que Manuel Clemente muito investigou e aprofundou e que consta justamente deste livro (uma recolha dos seus mais definidores textos, admiravelmente selecionados por Manuel Braga da Cruz que assinou a também magnífica introdução). Na conversa que se seguiu com o Patriarca de Lisboa e António Araújo e que tive o privilégio de conduzir ali mesmo, foi ainda dessa formidável capacidade de presença e resistência manifestada pela igreja portuguesa ao longo dos séculos que se falou. A memória por vezes precisa de ser adubada.

3 O que era afinal aquela gigantesca comunidade que acorrera a uma missa num sábado à noite para se despedir de alguém que tanto tocara a sua vida, senão um sinal? O sinal dessa sempre renovada capacidade de resistência a sejam quais forem as novas fórmulas de luta contra o catolicismo. (Num dos seus escritos, o Papa Bento XVI, afirmava a existência de “um cânone cultural contra a Igreja”. Sabemos que é verdade. Vemo-lo diariamente em acção e perdição).

Talvez por isso e num dos mais dignos silêncios em que jamais me vi envolvida, só entre cortado pela inspiradíssima celebração do padre Duarte da Cunha, julguei aperceber-me que ainda mais que o luto ou a perda ou a pena, o que ali unia indissoluvelmente uma comunidade tão vária e diversa – como raras vezes se pode ter observado, reunida num mesmo lugar – era um sentimento de pertença. Forte, voluntário, intacto. O resoluto querer “estar ali” de tantas centenas (milhares?) de pessoas que se dividiram pelas quatro celebrações, era uma afirmação mas também um anúncio de disponibilidade, sob a forma da recusa da rendição.

Estavam ali os soldados. Um legado é isto.

4 Passaram dois mil anos. Diz-se hoje a Igreja a minguar e a desfalecer, coberta de injúrias. Enterraram-na mil vezes, vexam-na quanto podem, só se lhe sublinha os pecados (terríveis, como os dos homens). Vinte séculos depois, a Igreja persiste. Está. Viva, inteira, planetária, essa que o soldado João Seabra serviu com paixão acesa e fidelidade de aço, sem trégua nem desfalecimento. Uma biografia é isto mais que o resto que no seu caso é aliás desmedido (como ele).

Passaram dois mil anos, sim. E nós, nove séculos depois, cá estamos. Resistindo, recozendo, regenerando, nesta ocidentalíssima margem do infinito, frente ao mar: soldados, como João Seabra nos ensinou.

5 Por falar em Igreja e por recordar a sua perenidade e permanência no mundo: e pensar que a manuelina Sé do Funchal – que por estes dias ganhou o Prémio Vilalva atribuído pela Gulbenkian ao melhor restauro de património privado pela recuperação dos seus deslumbrantíssimos tectos, em estilo mudejar, únicos no país – já foi a maior diocese católica do mundo?

 Iniciada em 1493 e mais tarde elevada a catedral, o Papa Leão X, ao instituir o Bispado do Funchal, fez deste templo, por alguns anos, a maior diocese católica do mundo: a Sé portuguesa abrangia todos os territórios descobertos pelos portugueses. Do Brasil ao Japão… Não é dizer pouco.

Nem sobre a Igreja, nem sobre Portugal.

* O livro a que acima fiz referência – uma viagem guiada por Braga da Cruz pelo pensamento pastoral e historiográfico do teólogo e historiador Manuel Clemente – chama-se “O Catolicismo, Portugal e a Europa – Uma Relação Criativa” e é uma bem vinda edição da Universidade Católica Editora e da Fundação Amélia de Mello. Muitos poucas pessoas – e é só um exemplo – abordam com um olhar tão próprio a questão da identidade nacional, de Portugal, dos portugueses. Como um fio que o saber, a intuição, a lucidez do autor o desafiasse a desenrolar, sem recurso a terceiros. Páginas absolutamente originais e de superior qualidade intelectual. Devia ser dado nas escolas.