Numa Perturbação da Identidade de Género um indivíduo sente que pertence a um género diferente do sexo que lhe foi geneticamente determinado. Na política portuguesa parece existir também quem aparente padecer de uma condição similar, uma espécie de Perturbação de Identidade Ideológica, ou seja, sente que pertence a uma área doutrinária que destoa da identidade do partido em que milita.

Enquanto os do espectro partidário da esquerda normalmente se afirmam sem rodeios e orgulhosamente de Esquerda, fomentando, até, em prol de um interesse próprio, uma visão partidária maniqueísta na sociedade, onde eles são, “obviamente”, os “bons”, à direita, infelizmente, parece existir algum receio e relutância em assumir publicamente, de forma firme e descomplexada, que se é de Direita. E os que o assumem fazem-no muitas vezes em surdina e envergonhadamente, contribuindo, assim, para a diabolização social deste quadrante ideológico.

Uma das infelizes particularidades culturais portuguesas é um escasso pragmatismo. Há uma tendência generalizada para ligar um “complicómetro” e desconfiar de soluções ou ideias que, embora sejam as mais adequadas ou melhor retratem uma circunstância, são simples demais para serem levadas a sério. A questão das ideologias partidárias é disso um bom exemplo. O passado dos partidos é importante, mas, por si só, não determina aquilo que eles são no presente. É preciso adequar o entendimento das ideologias à época em que se interpretam. A evolução dos tempos exige uma aprendizagem e uma adaptação dinâmicas e induz transformações várias na forma de pensar e de ser. Por isso, ser de Direita ou de Esquerda em 1974 não é exactamente igual a ser de Direita ou de Esquerda em 2021. Ainda assim, curiosamente, o Partido Social-Democrata (PSD) foi sempre reconhecido externamente como um partido de direita (e, até, inadequadamente, de extrema-direita!). Contudo, internamente, ainda há quem questione e receie essa catalogação e defina o partido como sendo ideologicamente do centro-esquerda ou do centro. Parece-me óbvio que o PSD sempre foi, e deve continuar a ser, um partido da direita democrática, social e/ou moderada, como lhe quisermos chamar, mas, inequivocamente da direita. Aliás, ainda recentemente, Marcelo Rebelo de Sousa o afirmou alto e bom som num debate (“Eu sou de uma direita social”).

Francisco Sá Carneiro, tantas vezes mencionado como uma referência pelas mais diversas personalidades, à data apelidado pela esquerda de “fascista”, representava uma direita social democrática, interclassista, defensora de um liberalismo político promotor de uma sociedade livre, justa e meritocrática, com respeito pela iniciativa e propriedade privadas e apologista de um Estado centrado no combate às desigualdades sociais através da facilitação da criação de emprego numa economia de mercado e da protecção dos mais frágeis e desfavorecidos. É isto que foi e deverá ser o PSD. Talvez o nome, que alude à social-democracia, possa ser equívoco e “Partido da Direita Social” ou “Partido da Direita Democrática” melhor definisse a sua identidade ideológica. Alguém associa Cavaco Silva, Durão Barroso ou Passos Coelho ao centro ou ao centro-Esquerda?

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As denominações Centro-Esquerda e Centro-Direita são, também elas, ambíguas. O que é afinal o centro? Se centro serve para identificar eleitores que ora votam na esquerda democrática ora na direita democrática, pode ser aceitável. Porém, como forma de referência a uma esquerda e a uma direita moderadas, pode ser enganador e confuso porque, dando a ideia de uma certa sobreposição e similitude ideológicas, não contribui para aquilo que é essencial em democracia: a existência e assumpção claras perante os cidadãos de alternativas democraticamente moderadas, mas robustas e diferentes. Assim, esta falta de clareza, por um lado, pode fazer com que os cidadãos não vejam necessidade de mudar e se acomodem na sua escolha, perpetuando um Executivo, apesar da incompetência revelada (o tal “eles são todos iguais”) e, por outro lado, pode desviar os votos no sentido dos extremos, dando força a movimentos populistas, caducos e/ou oportunistas, sem soluções adequadas para o país. Desta forma, talvez fosse mais elucidativo falar-se em Esquerda democrática (Partido Socialista) e Direita democrática (PSD), frisando aquilo que diferencia estes quadrantes e não o que os aproxima. Não quer dizer que não sejam possíveis e desejáveis entendimentos de regime para questões estruturais de fundo, ou que não se possa trabalhar em conjunto (até com repartição do poder de decisão) em torno de emergências nacionais, como por exemplo numa pandemia. Existem vários países onde, por força de uma cultura política e social madura bem estabelecida, isso acontece regularmente. Contudo, para efeitos de apresentação de alternativas ao eleitorado, reitero que me parece fazer mais sentido e ser mais profícuo falar da Esquerda democrática e da Direita democrática e pôr de parte a palavra “centro”.

O receio da palavra “direita” contribui para o maniqueísmo ideológico social que tem perpetuado nos últimos 25 anos o Partido Socialista (PS) no poder, com a consequência conhecida: um país pobre e na cauda da generalidade dos índices socioeconómicos de desenvolvimento. É por isso fundamental, que o PSD exponha, sem tabus e com clareza, qual é a via alternativa que, enquanto partido da direita democrática, defende para a edificação de um país livre, justo, solidário, próspero e meritocrático. As diferenças relativamente à esquerda democrática existem e são ainda mais salientes no quadro actual, onde o PS parece aproximar-se de uma doutrina de pendor marxista (Marta Temido diz que está “numa linha mais à esquerda” do Governo).

O PSD deve, pois, declarar-se e cimentar-se como o baluarte e o farol da direita democrática, aspirar a conquistar a maioria do eleitorado que lhe permita um governo autónomo (sem necessidade de coligações parlamentares ou governamentais), estabelecer-se como um partido de índole reformista e responder aos legítimos anseios da população através da assumpção dos seus próprios princípios diferenciadores, nomeadamente: “Valorizar o liberalismo político e a livre iniciativa caracterizadora de uma economia aberta de mercado; ser permeável à criatividade e à imaginação e aberto à inovação e à mudança; apostar no reconhecimento do mérito e na capacidade de afirmação pessoal e social numa sociedade onde importa distinguir os talentos pessoais que são contributos para o bem comum e para o progresso do país; ser dialogante, aberto à pluralidade de opiniões e à sociedade civil; e defender a moderação e a convivência pacífica entre homens de credos e raças diferentes, declarando-se avesso a qualquer tipo de xenofobia.”

A estatização da economia (TAP vai ser nacionalizada), uma elevada carga fiscal, o estrangulamento e o desprezo pelo sector privado criador de emprego e gerador de riqueza, o nivelamento da sociedade por baixo (“Interrupção é para todos”, avisa o ministro; “A ideia de deixar toda a gente em desvantagem ser a solução para o problema de alguns alunos, poucos, não terem computador é uma loucura”), o cultivo de uma espécie de paternalismo estatal, o desincentivo à meritocracia, a descredibilização de instituições (pela não recondução da competência ou por interferências inadmissíveis), cuja independência é essencial para a democracia (Governo abre porta à saída da Procuradora-geral Joana Marques Vidal; Governo não reconduz juiz conselheiro Vítor Caldeira no Tribunal de Contas; PSD questiona Conselho da UE sobre nomeação de José Guerra para Procuradoria Europeia), a promoção da desresponsabilização (Ministro não se demite e volta a lamentar morte de ucraniano no SEF; Provedora de Justiça: falta de novo centro de instalação temporária de imigrantes “é a grande falha do Estado português“; António Costa acusa Paulo Rangel e Poiares Maduro de liderarem uma “campanha internacional contra Portugal“; “Se tivéssemos conhecido a tempo a variante inglesa, as medidas no Natal tinham sido diferentes”; “Depois de Países Baixos, Bélgica, Itália e Áustria terem anunciado este domingo a suspensão de voos do Reino Unido, para prevenir a eventual entrada de pessoas infetadas com a nova variante do Sars-Cov-2 detetada em Inglaterra, o Governo português afasta para já uma medida idêntica”), o propagandismo inconsequente (“António Costa promete universalidade no acesso ao digital para o próximo ano lectivo”;  “António Costa rejeita colocar idosos fora do acesso prioritário às vacinas”) e a cultura de diminuída exigência (“Desempenho das crianças portuguesas a Matemática piora“) não são, seguramente, princípios que norteiem o PSD ou que, de alguma maneira, se sobreponham ideologicamente ao que o partido defende e representa.

Se o são, e/ou se há dentro do PSD uma maioria que se revê nestas políticas e forma de estar de um Governo do PS (o partido que os eleitores identificam como o bastião do “centro-esquerda” português), admito que quem, afinal, está no sítio errado sou eu…