Não gosto de teorias de conspiração, nem de processos de intenção. É simples, é barato e dá milhões de seguidores, mas como análise é nada. Nos tempos que correm é importante defender as instituições da democracia pluralista. Mas escutas durante anos e a prática reiterada e impune de fugas que prejudicam cidadãos nem sequer acusados, quanto mais condenados, é inaceitável. Se as instituições de investigação criminal querem ser respeitadas, devem dar-se ao respeito. Em certos aspetos a situação atual é pior do que no tempo da PIDE. Não, felizmente, na prática generalizada da tortura ou de prisões por crimes de consciência. Mas sim, na divulgação pública de conversas ou correspondência, que era algo que nem a PIDE fazia.
Há magistrados críticos?
Não é aceitável que se conclua daqui que todos os magistrados – juízes ou procuradores – são cúmplices deste estado de coisas. Algumas e alguns magistrados têm sido muito críticos deste estado de coisas apesar de arriscarem a sua carreira para o fazer. Mas também não aceito o pseudoargumento de populismo justicialista de que quem se atreve a criticar este estado de coisas – ou outros igualmente graves, como o abuso da prisão preventiva – o que quer é defender a corrupção. É o mesmo que dizer que quem, como eu, rejeita o recurso à tortura para combater o terrorismo, é um aliado dos terroristas. Defender que não vale tudo para combater o crime, qualquer crime, ou que, no limite, é melhor arriscar soltarmos um culpado por falta de provas do que prender um inocente, não é amigo dos criminosos, é um defensor consequente do Estado de direito democrático.
Dito isto parece haver magistrados, e outras vozes no espaço público, que, na prática, consideram que vale tudo, ou quase, para limpar Portugal do pecado da corrupção. Eu não desvalorizo os efeitos negativos da corrupção na eficiência económica e na legitimidade da política. Mas não admito que para combater esse crime – ou outros, não menos graves – se aceitem ações que do meu ponto de vista colocam em causa o Estado de direito democrático, a base das nossas liberdades. Todos os magistrados numa democracia deviam defender este princípio.
Escutas sem fim?
Também parece evidente que fazer escutas anos a fio – seja a quem for – é um manifesto abuso. Este é um meio de investigação muito intrusivo e tem de ser excecional numa sociedade democrática, geralmente usado para combater crimes muito graves. É até um meio de investigação que Portugal, ao contrário da maioria dos países da Europa, não permite aos seus serviços de informação – ainda que sob controlo judicial – para o combate preventivo ao terrorismo.
A prática de escutas anos a fio aos mais altos responsáveis de um governo parece aproximar-se perigosamente de uma mentalidade pidesca de que os políticos, ou pelo menos certos políticos, são suspeitos até prova em contrário. Este abuso é ainda agravado por estas escutas terem sido guardadas durante anos, dando depois origem a fugas para a imprensa.
Inaceitável politização
A politização da justiça é a grande objeção das vozes corporativas que defendem toda e qualquer decisão do MP e rejeitam qualquer escrutínio crítico ou mudança. Mas querem maior exemplo da politização da justiça do que esta última fuga das conversas entre João Galamba e António Costa? Alguém acredita ter sido coincidência serem publicadas num dia que poderia ter sido decisivo para que Costa fosse ou não escolhido para Presidente do Conselho Europeu? Qualquer observador honesto terá de reconhecer que, entre aqueles que têm acesso ao processo, haverá quem tenha uma agenda política hostil ao antigo líder socialista. Este tipo de utilização política da justiça é grave e típico de Estados autoritários.
Os que se deixam cegar pela sua crítica, seja ela mais ou menos justificada, à governação de António Costa, devem recordar-se que este tipo de abuso de poder pode atingir outros. O processo, e sobretudo o aparato das buscas domiciliares de que foi alvo o anterior líder do PSD, Rui Rio, parece-me, até prova e condenação em contrário, uma ação que merece suspeita de abuso de poder contra quem se atreveu a criticar algumas das prepotências e incompetências do sistema judicial.
Sejamos claros estas fugas não são culpa da imprensa. Esta faz o seu papel de divulgar informação politicamente relevante venha de onde vir. Poderá ser criticada, quando muito, se divulgar informação exclusivamente privadas ou reproduzir acriticamente desinformação. Mas no caso das conversas privadas entre João Galamba e António Costa – sobre a demissão da responsável TAP pelos custos políticos de erros seus – elas tinham evidente interesse público.
Da complacência suspeita às soluções
A complacência com a fuga repetida e impune de informação processual é evidente e inaceitável. Alguém, alguma vez foi acusado ou condenado por este tipo de fugas? Ora, elas têm manifestamente origem entre quem tem acesso ao processo, e, por regra, parecem prejudicar os suspeitos ou arguidos.
Que existe uma complacência suspeita dos responsáveis do sistema de investigação criminal com estas fugas repetidas fica evidente no facto de que nunca ouvi das vozes corporativas habituais que sempre reclamam falta de meios ou mudanças na lei para melhorar o seu trabalho, a pedir mais meios ou mais leis para combaterem devidamente este flagelo.
Que se estudem e debatam soluções, mas rapidamente, andamos nisto há demasiado tempo. Desde logo os responsáveis políticos devem deixar de enfiar a cabeça na areia. Talvez o façam por respeito louvável pela separação de poderes ou por receio de confrontar aqueles que os podem seriamente prejudicar, mesmo que nunca tenham cometido qualquer crime. Mas se é certo que o poder político eleito pelos portugueses não pode interferir em processos concretos, também é certo que pode ter uma política de justiça.
Muito poderia ser resolvido por uma Procuradoria Geral da República que funcionasse, e o fizesse com bom senso. Atualmente parecem ser necessárias mudanças legislativas. Deveriam deixar clara a responsabilidade última da PGR nestas questões e a natureza hierárquica desta magistratura, bem como seu dever de explicar aos portugueses as opções tomadas. Deveriam obrigar a que as escutas não diretamente relacionados com o crime em causa fossem rapidamente destruídas. A duração e âmbito das escutas também precisa de ser regulado e restringido. E sobretudo o acesso às mesmas tem de ser seriamente limitado e controlado. Um exemplo de como se faz é o da documentação com mais alta classificação de segurança da NATO, de acesso limitado a salas seguras, e com marcas que facilitam a identificação da origem da fuga. O magistrado titular do processo deverá também ser efetivamente responsabilizado se falhar no seu dever de guarda do mesmo resultando em fugas. Aparentemente é assim que se faz nos EUA, dizia o Nuno Garoupa já há mais de dez anos atrás, e resulta. Portanto soluções há. E quem defende a delação premiada e o crime de enriquecimento ilícito certamente não terá problemas com algumas destas opções que parecem bem menos problemáticas.
A justiça foi das áreas menos escrutinadas do Estado Novo. Só a PIDE foi extinta, mas muitos magistrados tinham sido cúmplices e colaboradores ativos na máquina repressiva do regime autoritário. Pelos vistos alguma dessa mentalidade pidesca permanece. Ela ameaça ganhar peso à boleia de uma moda justicialista e de movimentos populistas iliberais cada vez mais próximos do poder. Combater eficazmente a corrupção e outros crimes, sim. De caminho acabar com o Estado de Direito democrático, não.