Foi há dois anos: Marcelo Rebelo de Sousa, no auditório do Liceu Pedro Nunes, declarou que a história dos seus mandatos presidenciais se faria em «duas linhinhas pequeninas, em nota de pé de página a dizer que tentou ser muito próximo das pessoas, ser muito sensível às pessoas». Nunca, em mais de cinquenta anos de vida pública, esteve tão certo.

Marcelo fez companhia, quis ser o melhor amigo dos portugueses, beijou, abraçou, despiu calções, falou de assuntos de Estado com os cantos da boca enfarinhados de bolinha de Berlim, deu a táctica ao seleccionador nacional de futebol, calcetou passeios, comentou decotes, roubou batatas fritas, descobriu um esquema para ir a banhos; foi coerente com a sua produção intelectual das últimas cinco décadas, não restando dele uma ideia política, um princípio, um enunciado, um desígnio, uma causa, um combate, um valor que não o da fidelidade canina ao postulado dos afectos, da obsessão pelo processo e do desprezo pelo conteúdo. Dissolveu, comentou, divertiu-se com a comunicação social, comeu gelados e deu-nos a comê-los também, talvez com a testa. Foi um fiel escudeiro da chancelaria de António Costa, acabou enredado num embaraçoso, embora alegado, caso de cunhas e compadrios. Foi de Presidente da República, na forma, a Parodiante de Lisboa, no conteúdo: sem graça, sem engenho, sem autoridade, sem um singelo momento útil, efectivamente útil, em que se visse que a sua afamada inteligência era posta ao serviço de qualquer coisa. Nada.

Os seus mandatos terminaram há muito. E talvez por isso haja tanta pressa, e há tanto tempo, em escolher um novo Presidente. E, sejamos justos, porque a comunicação social, a única área de actividade que se deixou marcelizar, embasbacada com o mestre do facto político, viciada em processos e desleixada face aos conteúdos, começa a acusar a falta de notícias oriundas dos balneários do jogo táctico-tonto da política, e sabe que as autárquicas, mais próximas, provocam entusiasmo nas sedes concelhias dos partidos e nas suas vítimas da fome, e são um sumo menos apetitoso para o reality show que é a política da pátria.

As hostes agitam-se agora perante a chegada à arena circense em que se transformou a política de um homem de quem, diz-se, pouco se sabe acerca do que pensa. O que não deixa de ser curioso, já que Marcelo conseguiu ser eleito e reeleito também sem que o país lhe conhecesse uma ideia, o que nunca levantou qualquer celeuma. Talvez por uma razão: Marcelo podia ter as convicções bem guardadas, mas o seu desembaraço para conviver com a situação e respectiva mediocridade era sobejamente conhecido, o que gerava menos susto, e Gouveia e Melo é temido porque as fardas assustam uma elite de cobardes. Acena-se com a possível e perigosa presidencialização de um regime que já está, afinal, presidencializado na figura do Primeiro-ministro, num regime de chancelaria em que o Chefe de Estado mais não é do que um bibelot eleito, mais vazio do que nunca depois de dez anos de traquinice. E não se percebe que é por todos os receios que o almirante Gouveia e Melo suscita que é ele quem está em melhores condições de ser o próximo Presidente da República: traz com ele a autoridade, um legado de competência, e eventualmente pode mesmo representar uma nova presidencialização do regime, que passará necessariamente, e por essa via, a ser outra coisa, ignorando os partidos que se conhecem, até porque, provavelmente, terá de avançar com um outro.

Poderíamos, talvez, estar perante um caso dramático. Não creio que seja o caso. Gouveia e Melo é um péssimo sinal pelas razões mais simples. Porque é um funcionário, não um político. Pode vir a sê-lo, por agora não é. O seu legado é apenas o da competência: o que, num país relativamente sério, seria uma facto banal, parece ser agora visto pela maioria como uma excentricidade digna das maiores honras. Num país que se habituou a não ver com regularidade responsáveis administrativos do Estado a desempenhar com competência o seu trabalho, promover à chefia de Estado o melhor operacional de logística que conhecemos faz lembrar aqueles pedaços de terceiro-mundismo, onde o chefe da guerrilha se torna, por ser o melhor carniceiro, Presidente, como se uma coisa pudesse significar a outra. E porque tudo isto encerra a realidade de uma sociedade dependente e medíocre, que procura um salvador, depois de dez anos de entretenimento. Gouveia e Melo e o seu possível sucesso são sintoma de um atraso: como alguém dizia, um país que anseia por alguém que o salve, é porque já nem salvo merece ser.

Nada temais, pois. O Estado português serve hoje para duas singelas funções: sugar à Europa tudo quanto pode, e fazer o que o vinho alegadamente fazia no tempo da ditadura, isto é, dar de comer a um milhão de lares, razão pela qual não se vislumbrará mudança alguma no horizonte, nem para melhor, nem para pior, excepto talvez na forma. De resto, o sucesso eleitoral, hoje, mede-se mais pela capacidade de agradar a uma multidão de brutos, dizendo-lhes apenas o que querem ouvir, mas não fazendo nada por mudar o que ninguém quer ver alterado, do que em convencer uma maioria esclarecida e volátil de que a sua proposta política é melhor que a dos restantes. Ninguém sabe nada do que aí vem, se é que vem alguma coisa. Confesso que não me agrada esta pulsão portuguesa pelo surgimento de um caudilho salvífico. Mas uma coisa é certa: depois de Marcelo, pior do que está não fica. É nesse ponto que estamos, infelizmente.

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