Já não é de blazer, calções e meias altas que sobe a escadaria de ferro forjado do antigo Liceu Pedro Nunes que frequentou durante sete anos nos anos 60. Marcelo Rebelo de Sousa chega ao volante do seu próprio carro, também longe dos tempos em que chegava a pé vindo da Rua de São Bernardo, mesmo ali ao lado, acompanhado ora de um irmão, ora de dois. De resto, continua igual a si mesmo, fala de tudo, deixa recados, ajusta contas (com Bolsonaro), dá conselhos e até tática da bola. Bem pode a campainha tocar lá fora, que a aula segue quase duas horas sem parar com Marcelo muito em jeito de balanço de Presidência e de vida.

A história desta relação já é batida nestes sete anos de Belém, é a terceira vez que ali está para falar aos alunos da escola que já foi a sua. Mas o tom não é o que usou na comemoração do primeiro ano de mandato, nem mesmo o atarefado da última campanha presidencial (que tratava de assuntos de Estado no meio da conversa com os alunos), é estranhamente de fim de ciclo — afinal ainda faltam quatro anos.

Como foram os anos de Marcelo no Liceu Pedro Nunes

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No auditório que no seu tempo de aluno fora ginásio, Marcelo confessou aos alunos que enchiam a sala como prevê que a história da sua Presidência se fará em “duas linhinhas pequeninas, em nota de pé de página a dizer que tentou ser muito próximo das pessoas, ser muito sensível às pessoas”. Ao resumo logo acrescenta que também dirá de si mesmo como foi “um homem de composição, de estabilidade, concórdia e bom senso, tendo tido como desafio mais forte a pandemia e tentar manter a unidade nacional no enfrentamento da pandemia”. E afinal ainda mais uma coisa: “Ajudar o sistema político, apesar de todas as confusões a ser um dos mais estáveis da Europa”.

E chegado a este ponto — já muito além das “duas linhinhas” — até contou como no tempo da “geringonça” a “Europa conservadora olhava para o Governo que estava em funções” e como “tinha de se explicar que não eram propriamente os bolcheviques a ocuparem o palácio de Inverno dos czares”, numa alusão à Revolução russa de 1917.

Bolsonaro ainda atravessado

As perguntas da plateia tocaram temas dispersos e Marcelo deambulava pelo auditório enquanto ia respondendo a cada uma, fosse sobre Cascais, o Mundial de futebol — em que falou do calendário e adversários de jogos , entre considerações várias sobre os perigos de enfrentar a Coreia do Sul de Paulo Bento — ou sobre diplomacia. A dada altura, um aluna quis saber como geria as relações com chefes de Estado de outros países que não têm semelhantes valores. Sem ninguém dizer o nome de Jair Bolsonaro, Marcelo disparou numa resposta  que não tinha outro nome nas entrelinhas.

“As relações entre Estados não são de simpatia pessoal, mas de chefes de Estado, são relações entre Estados com regimes políticos, sociais e económicos diferentes. Se fossemos escolher Estados com uma Constituição como a nossa dávamo-nos com uns vinte e tal Estados no Mundo e não com 190”. Mesmo que com isso possa ser mais vezes “desamado” do que “amado”, acabou por concluir.

Mas se ao início a resposta era genérica, não tardou a mostrar como o desfile da comemoração da Independência do Brasil que pareceu comício bolsonarista ainda incomoda: “As pessoas de fora agora dizem que não iriam, mas pode-se deixar de ir ter com uma importante comunidade portuguesa?”. “Os presidentes mudam”, disse logo depois, deixando zero margem para interpretações sobre a que episódio se referia.

E nesta senda do faz-se-o-que-tem-de-se-fazer que Marcelo concluiu que não soma no seu círculo de relações mais próximas muitos chefes de Estados com quem se foi cruzando neste caminho. Bom, lá admite que às tantas ainda chegam para formar um “grupo excursionista”.

Quando a pergunta veio mais certeira sobre as eleições no Brasil, manteve-se inamovível na tal posição de diplomata. “Não posso dizer se gosto mais do A ou do B, não posso dizer no Brasil nem em nenhum país. Nem no meu país sobre quem prefiro como meu sucessor”, exemplificou perante os alunos, fechando a sete chaves a sua opinião.

Guerra testa Rússia e também unidade europeia (e a bicada a Macron)

Já não foi tão esquivo sobre a situação internacional que ocupa boa parte das suas preocupações na atualidade — e sobre a qual até levava algo para voltar a dizer ao Governo –, ainda não sabe se irá à Ucrânia, Polónia e Roménia, mas tem convites de todos. E assume que a “Ucrânia mostrou capacidade de resistência superior à antevista”, perante a ofensiva russa.

Espera agora que “a guerra não seja indefinida” no tempo e nos seus efeitos. “Mal seria ser as incertezas ligadas à guerra fossem de cinco ou seis anos”, atirou, lembrando que esses efeitos têm disparado e feito vítimas em todas as direções.

Mais do que previsões sobre Segurança Social, Marcelo quer saber o que vai caber no próximo Orçamento

Começa por aqueles que “nem sequer uma almofada têm” para enfrentar o aumento dos preços. E passa para a necessidade de uma ação europeia concertada em matérias concretas como as energéticas, por exemplo. “Há um caminho para encontrar formas alternativas de independência energética. Se a Europa se unir e não for egoísta e não disser que ‘no meu país não passa gasoduto’…”

Na cabeça do Presidente está a posição do Governo francês que ainda em agosto rejeitou a construção do gasoduto que liga a Península Ibérica à Europa através de França. E ainda este mês o presidente Emmanuel Macron disse que não estar “convencido de que sejam necessárias mais interligação de gás, cujas consequências, em particular no ambiente, e em particular no ecossistema, são mais importantes”.

Quanto à guerra em si, Marcelo diz que ela também põe à prova, pela primeira vez em muito tempo, a capacidade militar russa. Mas também deixa rasto na política europeia, apontando para o exemplo de Churchill depois da Segunda Guerra Mundial: “Ganhou a guerra, mas perdeu as eleições”.

A história evidencia, na sua análise, que “os governos que estão no meio da guerra têm maior dificuldade em ganhar eleições”, já que estão sujeitos “aos desgaste e à insatisfação. No primeiro momento a culpa é da guerra, mas no segundo, a culpa é do Governo”, diz apontando as eleições que vão ocorrer no domingo em Itália, mas também as que já aconteceram na Suécia.

Mas análise encaixa também na política interna, onde o Governo em funções foi eleito dias antes da guerra na Ucrânia começar, mas nem por isso tem deixado de estar na linha do desgaste permanente e entre pacotes de medidas de resposta à subida da inflação. Mas Marcelo evitou extrapolações dentro de fronteiras.

Cautela nessa frente e sem pessimismos. Afinal este é o mesmo Presidente que acabara de dizer sobre si mesmo ser um “otimista não irritante”, “realista”, que vai “morrer otimista”. Neste momento, limita-se ao diagnóstico — tal como aquele que admite aos alunos ser a sua especialidade no campo da medicina, onde não se formou mas gostaria de ter formado.

Pediu aos alunos que arriscassem. E, no balanço da sua própria vida, diz que foi “praticamente sempre o que gostaria de ter sido”, colocando a docência como atividade principal. “Formei-me para ser professor e não Presidente da República, isso foi uma extensão”. Até parecia que não, mas há mais quatro anos de capítulo pela frente. Entretanto tocou para o almoço.