Por estes dias, o mundo assiste com respeito e até espanto, às cerimónias fúnebres da Rainha Isabel II. Como monarca, ela chefiou não apenas o Reino Unido, mas, ao longo do seu reinado, 32 Estados independentes, 14 dos quais à data da sua morte. Liderou ainda a Commonwealth, uma comunidade de 53 países de inspiração britânica, a Casa Real de Windsor, a Igreja de Inglaterra, e as Forças Armadas do Reino Unido. O seu reinado, sem nunca ter sido eleita, por direito recebido de forma hereditária, durou 70 anos. De todo o mundo surgem manifestações de apreço pelo seu papel e peso na História – as mais impressionantes do próprio Reino Unido, onde pessoas de todas as idades, origens sociais e crenças esperaram horas a fio (em alguns casos, mais de 24 horas), para poderem velar por breves instantes o seu corpo em câmara ardente –, mas também críticas, sobretudo dirigidas, não tanto à pessoa da rainha Isabel II, mas da instituição que representa – a Monarquia – por ela não ser “democrática”.

A Monarquia não é seguramente “democrática”, mas não deixa de ser compatível com o que consideramos hoje ser um Estado de Direito moderno, como é o caso do Reino Unido, convivendo bem com outras instituições, elas próprias, democráticas. Até porque, não sendo fã de inerências monárquicas não posso também esquecer – e aqui recordo – que a palavra “democracia”, sendo usada com frequência como um lugar-comum, abarca toda uma série de conceitos que a transcendem. À democracia são imputadas com frequências funções (e virtudes) que correspondem ao exercício da liberdade ou à normal tutela daquilo que é um Estado de Direito, estando hoje profundamente em crise.

Não é de agora, a confusão vem de longe, e não é inocente: há forças políticas, normalmente de esquerda, que tentam imputar à democracia a ideia de que ela só se realiza quando prossegue um determinado programa político específico. Para este núcleo de pessoas, a democracia só se concretiza na eleição daqueles que perseguem e defendem certas e determinadas políticas, devendo haver “resistência” quando a vontade popular se encaminha para outro tipo de escolhas, as quais, sendo expressão do voto ou do sentir popular, passarão a “não ser democráticas”. Neste quadro de pensamento, democracia e liberdade são habitualmente apresentadas como faces de uma mesma moeda. E se me parece consensual que sem democracia não existe liberdade, há muito que defendo que no jogo de forças entre ambos os conceitos o papel da democracia tem sido excessivamente valorizado. A democracia em si não tem o valor social que por vezes muitos lhe atribuem: ela é apenas uma forma de governo das sociedades, que se impôs pelos seus méritos na generalidade dos países desenvolvidos, mas assiste apenas na afirmação da soberania popular como princípio fundamental, não sendo, contudo, condição suficiente para a realização da pessoa na comunidade: tal só ocorre quando se defendem as liberdades.

A democracia é condição necessária, é o sistema de governo que permite que a globalidade dos cidadãos possam escolher os seus governantes. A democracia serve para organizar um poder que emana da generalidade dos cidadãos. Na verdade, e na impossibilidade de existir uma tutela direta exercida pelos cidadãos sobre todos os elementos da gestão comunitária, torna-se necessário definir um processo de escolha dos que, sob mandato, vão gerir a esfera pública. A democracia diz, portanto, respeito à questão quem governa. E pressupõe que a escolha reside em cada um dos cidadãos. Tem, assim, uma justificação funcional, sendo esse o seu valor social.

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Valor esse que está profundamente depauperado em várias democracias ocidentais. Com o crescimento exponencial do Estado, grande parte das relações sociais passaram a ser arbitradas e mediadas por canais democráticos, criando dificuldades e tensões insanáveis entre aquilo que são as regras do jogo político e a efetiva protecção das liberdades concretas. O alargamento do papel do Estado, para lá da protecção dos direitos fundamentais, administração da justiça e de safety nets bem contratualizadas, concentrando na ação coletiva um conjunto de funções tidas como sociais e de regulação, conduziu-nos a um modelo de sociedade que privilegia excessivamente liberdades prescritivas (ou ditas positivas), em detrimento ou esvaziando liberdades negativas básicas (tais como as apresentaram Stuart Mill ou Isaiah Berlin). Ora, o recurso aos mecanismos democráticos para regulação de inúmeros aspetos da nossa vida social conduz às perplexidades a que assistimos em inúmeros países ocidentais, em que uma larga franja da população, não se revendo nos que presidem ao poder político, não compreende que grande parte da sua agonia é fruto, precisamente, da excessiva concentração de funções na esfera estatal, que lhes restringe – para lá do que é necessário – as liberdades individuais.

Em muitos casos, a democracia tem-se tornado numa ditadura da maioria, reduzindo as liberdades individuais. Tal é resultado da tentação de querer imputar “valores” à própria democracia, como se um sistema de governo funcional tivesse em si mesmo uma dimensão de promoção de valores ou de um dado programa político – que não tem (ou, dito de outra forma, não deveria ter). Em Portugal, por estes dias, vivemos precisamente este drama perante a falência óbvia dos sistemas de saúde e de segurança social, sem que nenhuma força política tenha a coragem de dizer por medo de “sacrilégio”, o que é mais do que sabido: temos Estado a mais na saúde e na previdência.

É por isso curioso assistir a tão significativo enaltecimento da Monarquia, num tempo em que é evidente em tantos Estados que escolheram o republicanismo que muitos cidadãos se sentem defraudados com a resposta política.

Desde logo, o desalento é transversal, não sendo monopólio de nenhuma área política. Mas como poderia o resultado ser diferente? Como poderia não haver desilusão, se a desproporção que existe entre as expectativas que os cidadãos colocam nos políticos e no Estado, tal a multiplicidade de funções que se concentram na esfera Estatal, e a forma como a “soberania popular” é exercida, é enorme?

Desde logo, o exercício da democracia, que se traduz no voto, é hoje quase um expediente. Os cidadãos, num só ato, por intermédio de um único voto, têm de escrutinar milhares de decisões com impacto direto sobre a sua esfera individual, num processo de síntese complexo e por vezes contraditório. Num só voto, temos de expressar tudo o que pensamos – quando pensamos – sobre educação, saúde, reformas, economia, cultura, e coisas até que ignoramos existir, mas que impactam na nossa vida quotidiana, num exercício que é completamente frustrante. O processo eleitoral perdeu, no atual contexto, a sua vocação contratualista, o seu carácter de agência, para se tornar num cálculo para-matemático onde buscamos desesperadamente um mínimo denominador comum que sustente a nossa decisão. Em boa medida, o voto do cidadão em pouco difere daquilo que nas relações privadas apelidamos de “contrato de adesão”, onde a liberdade do cidadão se limita a dizer “sim” ou “não” à totalidade de um programa político.

Acresce que a omnipresença da esfera pública aliada à imposição da escolha democrática tem vindo a enfraquecer de sobremaneira quer o vínculo contratualista quer os mecanismos de controlo do fenómeno político, criando o ambiente propício para que à volta do Estado gravitem uma pluralidade de interesses particulares ou corporativos que, capturando os mecanismos de decisão, redistribuem entre si, sob a proteção de um complexo manto legal, os frutos do poder concentrado, fora da tutela da generalidade dos cidadãos. O Estado e os seus agentes têm o monopólio do uso da força, da lei, dominam uma rede de interesses, de subvenções, desenvolveram retóricas que justificam a(s) sua(s) própria(s) existência(s), atuando numa teia intrincada e de difícil compreensão, ainda assim percetivelmente incoerente e incongruente com muitos dos fins que assume(m) perseguir.

Não obstante as dificuldades que enfrenta a sociedade britânica, no Reino Unido, a Monarquia tem funcionado como elemento de defesa da tradição, ou seja, de tudo aquilo que é considerado válido e resiste à erosão dos tempos, sendo os monarcas mais apreciados que os próprios políticos. Numa comunidade onde a lei tem esse carácter consuetudinário, com uma forte marca da intemporalidade, a Monarca, não tendo sido eleita, teve uma enorme aceitação do Povo, não apenas pelo que foi, mas pelo que representa – uma tradição, um sistema legal, e um tipo de sociedade que os britânicos querem proteger. E o facto de o Reino Unido, nas suas boas (e más) escolhas, ter sido capaz de manter a sua marca, continuando a ser uma das nações mais prósperas e emblemáticas do mundo, com instituições políticas de excelência, faz com que grande parte dos cidadãos do mundo olhem para a sua monarquia como algo que lhes merece a atenção e – diga-se – admiração e respeito.

Apesar de ter crescido rodeado de histórias de reis e rainhas, e do meu próprio nome me ter sido dado em homenagem direta a um rei visigodo que dedicou a sua vida à reconquista, algures no século VIII, nunca tive simpatias monárquicas. A democracia tem, mesmo onde ela apresenta inúmeras fragilidades, uma importante virtude: a democracia e o voto popular, como nos ensina Popper, funcionam como válvula de escape, exprimindo-se na capacidade de despedir ou expulsar governos, sendo isso bem mais importante do que propriamente na concessão de um mandato para um programa político. O voto é cada vez mais uma reação, uma penalização, do que propriamente uma adesão a um conjunto de medidas propostas que acentuem o carácter contratualista que deveria existir entre eleitores e eleitos. Uma eleição é, aliás, a derradeira forma de expulsar governos sem recurso à violência ou à insurreição (algo que irresponsavelmente tantos fingem ignorar no caso angolano, ao permitirem que o MPLA se perpetue sem legitimidade no exercício da governação). Tal não significa que um Estado de Direito não possa ser virtuoso, próspero, e bem governado, num equilíbrio entre instituições eleitas democraticamente, chefiadas por um Monarca, se tal merecer o acolhimento da maioria da população, e a aristocracia perceber que o seu estatuto é muito mais um fardo, e muito menos, um direito.

Atrevo-me a escrever que no mundo complexo em que vivemos, em que as cidadanias são cada vez mais globais (não se identificando as pessoas comuns estritamente com os limites daquilo que é o seu território de origem vinculado a uma ideia de soberania), em que os cidadãos têm aspirações pessoais próprias e uma potencial autonomia individual para as realizar que colide com a excessiva presença do Estado na tomada de decisões que deveriam ser suas, as principais preocupações dos cidadãos descomprometidos deveriam ser, desde logo, a clara redução das funções que devem estar concentradas nas mãos do Estado, e que são limitadoras das suas liberdades concretas; e a procura de mecanismos eficazes de tutela dos agentes públicos. Precisamos de menos democracia (no sentido de devolver aos cidadãos inúmeras decisões que hoje estão concentradas na esfera pública, funcionando burocraticamente sob decisão coletiva), e de mais Estado de Direito (no sentido dos cidadãos terem os seus direitos, liberdades e garantias protegidos por via legal, e tutelados num quadro efetivo de separação de poderes). Ao contrário do que muitos enunciam, o que protege um cidadão comum é o bom funcionamento da lei, num contexto de uma efetiva separação de poderes, e não a democracia. Aquilo que realiza o indivíduo é o exercício concreto, por si próprio, das suas liberdades, e não tanto a transferência em massa para terceiros de uma fatia significativa daquilo que são as suas aspirações, que tendem a ser capturadas por agentes por conta de interesses conflituantes com os do cidadão comum.

Este tema, como disse, não é propriamente novo, apesar das suas ramificações permanecerem atuais. A esse propósito recomendo uma nota muito simples mas clara – “A frustração do ideal democrático” – do André Azevedo Alves, a propósito de um texto de Hayek, incluído numa das suas obras fundamentais: Law, Legislation and Liberty.