Após as crises sociais das reformas e do movimento dos coletes amarelos em França, após as horas mais negras da pandemia, mas também após 40 anos de um ciclo de políticas económicas liberais que começou nos anos 1980, a questão do poder de compra instalou-se no debate público na Europa. No entanto, a própria noção de poder de compra enquanto indicador do progresso do nosso nível de vida deve ser posta em causa.

É certo que o poder de compra permanece um indicador estatístico para descrever um fenómeno económico da forma mais objetiva possível. Ele apresenta, no entanto, numerosas lacunas, decompondo-se em dois grandes conjuntos: por um lado os salários brutos ou líquidos, por outro lado um índice de preços no consumidor de produtos essenciais (alimentação, bebidas, jornais e periódicos, alojamento, água, gás, eletricidade, combustíveis, saúde, transporte, comunicação, educação, restaurante, hotéis…). Há mais de uma dezena de anos, as instituições de análise de dados económicos apresentam uma curva onde o «rendimento disponível bruto» (salários brutos – índice dos preços no consumidor) tende a aumentar. Em França, as medidas tomadas mais recentemente pelo governo aquando da crise dos coletes amarelos são o reflexo desta tendência: prémio de atividade, isenção fiscal das horas extra, atividade parcial…

Mas, como qualquer índice, trata-se de uma média ponderada. Ora as ponderações dos bens distorcem a informação em particular sobre o índice de preços, certos aumentos podendo ser subponderados (o pão, ‘a baguette’) ou, pelo contrário, algumas descidas com sobreponderação (eletrodomésticos, hi-fi, automóvel…). A sua evolução continua compatível com o aumento das desigualdades, ou ainda com uma descida dos salários nas profissões ligadas ao setor dos serviços e cuidados, exercidas principalmente pela classe média e com o desenvolvimento em massa de ‘mini-empregos’. Por fim, a subida contínua dos preços da energia, que pesa muito mais nas carteiras das famílias mais «modestas», está ainda insuficientemente integrada neste índice. Para além dos cheques energia e combustível (cheques de solidariedade) esta subponderação é reveladora do atraso existente na transição energética, num contexto onde já não é possível continuar com as fontes de energia fósseis.

Estas estimativas, e a comunicação pública promovendo esta evolução positiva do poder de compra, enfrentam atualmente de forma brutal a impressão da diminuição do poder de compra dos franceses. É certo que os salários não baixam (em média), é certo também que o índice de preços no consumidor não aumenta, mas são as despesas essenciais, cuja parte é mais elevada nos rendimentos mais baixos, que aumentam, uma vez que estas despesas estão relacionadas com comportamentos sociais (aumento das rendas, excesso de consumo alimentar, aumento das faturas de água e de energia sob o efeito das 5 duches por dia assim como a multiplicação dos ecrãs, dos seguros para bicicletas e cães, das despesas ligadas ao transporte para o local de trabalho cada vez mais afastado, o lazer, os juros dos créditos ao consumo, etc.). Temos de rever as nossas despesas de luxo!

No entanto a diferença entre o ‘sentimento’ dos cidadãos e a estatística oficial não depende apenas dos nossos gostos refinados e dos efeitos de moda.

Na realidade, os índices e indicadores económicos afastam-se cada vez mais da realidade económica. Primeiramente estas estimativas baseiam-se no modelo de famílias de duas pessoas ganhando cada uma delas um salário. Trata-se da noção administrativa de lar. É certo que foram realizados esforços através do conceito da «unidade de consumo» (que permite a individualização do poder de compra) porém é evidente que a administração avalia sempre bastante mal a precariedade que resulta da automatização e dos impactos da inovação tecnológica sobre o emprego e sobre o poder de compra. Multiplicação dos contratos de trabalho a termo certo (prazos curtos), famílias monoparentais, precaridade pós-divórcio, acumulação de pequenos trabalhos, precaridade da juventude, enfim todas estas categorias da população bem reais não entram em linha de conta das estimativas. Não somente estes indicadores não abrangem mais os riscos do mundo do trabalho de amanhã, mas, pior do que isso, vão atrasar a adoção de políticas económicas modernas e adequadas.

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