1 Casos de sucesso: lições sobre políticas de saúde pública

Como noutras áreas da saúde ou da economia, os casos de sucesso no combate à pandemia da Covid-19 são o resultado não de uma medida concreta, mas de um conjunto de pré-condições, tais como o nível de desenvolvimento e preparação do sistema de saúde, como a conjugação de várias medidas tomadas contra a pandemia. Os casos de sucesso identificados na UE, depois das duas ondas, são a Finlândia, os Países Bálticos, Chipre, Grécia, Dinamarca e Alemanha. Dentro dos países desenvolvidos são também casos de sucesso, na Ásia, a Coreia do Sul e Taiwan.

A estratégia contra a pandemia envolve quatro braços:

  • Prevenção (P): este braço envolve várias medidas: (i) informação pública correta e facilmente compreensível sobre a situação da pandemia, (ii) plano claro e de acordo com os princípios médicos básicos para prevenção e combate à pandemia, (iii) diretivas sobre confinamento e distanciamento social, (iv) higiene pessoal e desinfeção pública, (v) utilização de máscaras e outros equipamentos protetores, e (vi) confinamento e distanciamento social.
  • Deteção (D): envolve duas medidas básicas (i) testagem generalizada das populações, em particular de grupos vulneráveis, e (ii) identificação das cadeias de infeção, sobretudo através de meios digitais.
  • Contenção (C): a medida principal é o isolamento dos infetados.
  • Tratamento (T): conforme os níveis de gravidade: (i) acompanhamento médico no domicílio, (ii) tratamento hospitalar ligeiro, e (iii) tratamento hospitalar de casos graves (cuidados intensivos).

Vejamos como cada um destes tipos de medidas foi desenvolvido nos países de sucesso.

Prevenção:

A Alemanha tem um sistema de institutos de investigação de excelência a nível mundial. No caso da Covid-19, o instituto de saúde pública Robert Koch Institute (RKI) assumiu o papel de liderança logo desde janeiro. Em colaboração com as autoridades locais de saúde e outras instituições científicas, coletou os dados e realizou as análises necessárias para definir a resposta à pandemia. O RKI publicou relatórios diários de monitorização, orientações técnicas, documentos de estratégia, planos de resposta, e trabalhou com as autoridades públicas locais, nacionais e internacionais para distribuir a informação. Também a Finlândia tinha um elevado grau de preparação institucional e reação a emergências, devido à experiência coletiva durante a Guerra de Inverno de 1939-40 contra a União Soviética. E a Coreia do Sul tinha a experiência do combate às epidemias do SARs.

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Nos três países, os hospitais tinham experiência e capacidade para tratar casos epidémicos. Também nos três países havia um elevado grau de confiança nas instituições de saúde pública, e aderência às orientações básicas de higiene e distanciamento social, embora em menor grau na Alemanha, onde houve alguma contestação. Os três países reagiram de forma rápida e eficiente à eclosão da I onda pandémica, tendo os países europeus impostos medidas drásticas de confinamento social.

No caso da Alemanha, começou-se pela proibição de grandes reuniões a 10 de março. Em meados de março, fecharam-se as escolas e foi proibida a entrada de cidadãos de fora da EU por 30 dias. A 22 de março decretou-se a proibição de reuniões de mais de 2 pessoas (fora das famílias), o distanciamento de pelo menos 1,5 metros e o encerramento do comércio não essencial.

A Finlândia também no início da I onda impôs um lockdown de dois meses, cerca de duas semanas antes dos outros países escandinavos. As viagens entre Helsínquia e as áreas circundantes foram restritas. As escolas e lugares públicos foram encerrados, incluindo restaurantes. A Finlândia está também entre os países com menor densidade populacional, e o povo finlandês está habituado ao isolamento. Embora o comércio tenha permanecido aberto e o confinamento obrigatório tenha sido evitado, o governo de Helsínquia impôs fortes restrições a viagens. Os visitantes de quase todos os países de fora da Europa foram impedidos de entrar, e testes e quarentena requeridos para todos os europeus. Um dos fatores que ajudou no distanciamento social foi o elevado nível de digitalização da sociedade: por exemplo, todos os alunos têm um computador portátil.

Deteção:

A Alemanha foi um dos primeiros países a desenvolver e fabricar testes em larga escala, sendo um dos países com maior número de testes por caso confirmado. Os testes estão disponíveis para toda a população, grátis depois de indicação médica ou epidemiológica, e esta indicação foi recentemente recomendada para contactos assintomáticos, especialmente trabalhadores de saúde e idosos, e para avaliação (screening). Um dos primeiros testes de diagnóstico do covid foi descoberto no Hospital Charité de Berlim e a Alemanha foi também pioneira nos testes de PCR, que ainda hoje são largamente utilizados. Também foi uma empresa alemã, a BioTen, que em conjunto com a Pfizer desenvolveu a primeira vacina contra a Covid-19. Uma das áreas em que o país teve menor sucesso foi na identificação das cadeias de transmissão (contact tracing). A app desenvolvida para o efeito não teve grande sucesso devido a questões de privacidade. O Governo contratou equipas de estudantes (escuteiros do confinamento) para trabalharem com as autoridades locais da saúde na identificação das cadeias, com sucesso relativo.

Em contraste, a Coreia do Sul atribui uma grande parte do seu sucesso à generalização mesmo ainda em fevereiro de 2020 dos testes ao vírus, tendo mobilizado os laboratórios nacionais para o efeito. Quando a I onda eclodiu, estabeleceu 600 centros de testagem fora do sistema de saúde, com a capacidade de realizar 15 a 20 mil testes por dia. Em particular, os centros drive-through tiveram grande afluência, devido às melhores condições de espera dos utentes. A Coreia do Sul também desenvolveu uma app para identificação das cadeias de infeção, que combinou com dados de videovigilância e até dos cartões bancários, para identificar as cadeias. Expandiu a sua task force do Serviço de Informação Epidémico, treinando pessoal nos seus 250 centros de saúde e admitindo mais 300 epidemologistas e ajudando 11 ONGs que treinavam e apoiaram os funcionários dos serviços de informação.

A Finlândia teve também um grande sucesso na app desenvolvida para identificação das cadeias, a “Corona Flash”, que foi descarregada pela quase totalidade da população, não tendo sido limitada por problemas de privacidade e funcionalidade que afetaram a maioria das apps dos outros países da UE.

Contenção:

O maior sucesso da Alemanha nesta política de saúde foi a prioridade dada aos lares de idosos, que levou a uma baixa taxa de infeções. Na Alemanha, os casos que afetaram a população acima dos 70 anos foram inferiores a 19% — comparados com a Espanha com 36% e a Itália 39%. Esta política levou a uma forte redução da taxa de mortalidade da Covid-19, que é menos de metade daqueles países. Também a Coreia do Sul conseguiu uma taxa de infeção dos idosos inferior a 11% do total de todas as idades, com uma taxa de mortalidade da Covid-19 ainda inferior à Alemanha.

Uma das principais lições destes dois países é que para manter baixa a taxa de mortalidade e letalidade é fundamental conter a taxa de infeções entre os idosos relativamente baixa, através de medidas de prevenção e contenção.

Em relação à população em geral, a Coreia do Sul adotou também medidas mais drásticas de contenção, isolando os pacientes infetados, que eram obrigados a permanecer em isolamento nos seus domicílios ou em instituições dedicadas para o efeito, e submetidos a vigilância das autoridades sanitárias. Para complementar a contenção, também é de notar o esforço de centenas de epidemiologistas que usavam todos os meios e big data para descobrir as cadeias de transmissão, como acima se indicou.

Tratamento:

A última política é o tratamento dos doentes infetados. Em todos estes países se definiram critérios de gravidade para o tratamento domiciliar ou hospitalar. Estes três países estão entre os países do mundo com melhores estruturas hospitalares.

A Alemanha é o país da UE que tem o maior número de camas em hospitais por mil habitantes (8,3), e tem um forte setor de laboratórios públicos e privados, dos quais cerca de 200 indicaram ter capacidade para testar o vírus da Covid-19. Também está entre os cinco países da UE com maior número de enfermeiros (13,2) e médicos (4,2) por mil habitantes.

Além disso, a Alemanha tem o sistema de saúde menos restritivo e mais orientado para os consumidores da Europa. O seguro de saúde é obrigatório para todos os residentes, com cerca de 90% da população coberta através de companhias de seguros sem fins lucrativos e não estatais, e cerca de 10% coberta por seguros privados. Num inquérito do Commonwealth Fund, a Alemanha tinha os menores tempos de espera tanto para consultas com especialistas como para cirurgias não urgentes.

Também a Finlândia e a Coreia do Sul têm excelentes sistemas hospitalares e com bons indicadores de serviço. Além disso, a Coreia do Sul construiu um conjunto de hospitais temporários para reforçar a capacidade e resolveu o problema de escassez de material protetivo para o pessoal hospitalar através de um sistema centralizado de compras.

2 Testes e medidas de distanciamento social

Aqui vamos estudar duas políticas públicas de combate à Covid-19: a testagem da população e as medidas administrativas de distanciamento social. É corrente dizer-se que o número de testes está relacionado com o número de infeções, porque um maior número de testes permitirá identificar um maior número de infetados. Contudo, a inversa também é verdadeira, ou seja, quando um país tem uma maior intensidade pandémica, vai lançar políticas públicas de maior testagem da população.

Como é que se comparam estas variáveis com outros países? No caso dos testes, vários especialistas têm acentuado não só a necessidade de fazer testes, mas de intensificar o seu uso à medida que o número de casos positivos aumenta. Ou seja, o ideal é nunca deixar que o número de testes por caso positivo suba acima de um dado limiar. E qual esse limiar? O site da Universidade de Oxford considera que, quando a taxa de positivos ultrapassa os 10%, a pandemia entra em fase de descontrole, e que os países que têm uma taxa de positivos inferior a 3% têm a pandemia sob controle.

O Gráfico 1 mostra que a Bélgica é o país que teve um maior índice de positivos por testes, que ultrapassam o limiar dos 10% durante toda a I onda e desde o início de outubro para a II onda. Também no caso da Espanha aquele índice é ultrapassado durante a I onda e volta a ser ultrapassado em inícios de novembro já em plena II onda. Este é também o caso de Portugal.

Os casos onde o índice esteve sempre abaixo dos 10% são a Alemanha e sobretudo a Finlândia, o que é um dos fatores porque estes países são considerados casos de sucesso. A média deste rácio durante a pandemia foi de 15,7%.

Gráfico 1

Fonte: ourworldindata

Haverá alguma relação entre o alargamento dos testes (número de testes por infetado) com o número de mortes, ao longo das I e II ondas? Os Gráficos 2 e 3 mostram que o maior número de mortes está associado com um menor número de testes por infetado. Ou seja, o maior número de mortes poderá ser atribuído a uma escassez de testes que permitem identificar com antecedência as pessoas que contraíram a doença. Este resultado confirma o que os especialistas têm afirmado de que a generalização dos testes é uma medida fundamental para controlar os efeitos mortíferos da pandemia.

Gráfico 2

Fonte: Cálculos do autor

Gráfico 3

Fonte: Cálculos do autor

Quais as diferenças nas políticas de confinamento entre os países? O Gráfico 4 mostra que todos os países adotaram políticas de forte confinamento (lockdown) em resposta à curva ascendente de infetados na I onda. Segundo o índice elaborado pela Universidade de Oxford, as políticas mais restritivas foram as da Espanha, Bélgica e Portugal, em contraste com as políticas menos restritivas da Alemanha e sobretudo da Finlândia. Na fase descendente da curva de novos infetados, depois de dois meses do início do lockdown, houve um aligeirar das restrições em todos os países, sendo a Bélgica e a Finlândia aqueles que mostram o maior relaxamento. Na II onda todos os países voltam a subir as restrições, mas nenhum deles volta aos níveis atingidos na I onda. A Espanha é o país que aperta as restrições mais cedo, logo em julho, o que terá sido devido à subida de casos com o influxo de turistas e maior mobilidade interna.

Gráfico 4

Fonte: ourworldindata

Existem dois vetores para a definição de uma medida de confinamento pelas autoridades. O primeiro é que o grau de confinamento deve ser proporcional à gravidade da pandemia, antecipada pela curva de infeções totais esperadas. E o segundo é a sua oportunidade temporal, ou seja, a antecipação à forte subida das infeções, e que pode ser medida pelo valor atual de um R>1 e expetativa de subida acentuada no futuro próximo. Nas nossas estimativas, utilizamos o indicador de confinamento (stringency) publicado pela Universidade de Oxford (ourworldindata), para se poderem fazer comparações entre países. O Quadro 1 tenta medir estes dois vetores. O Grau de restrição (Grau rest) mede o valor médio do confinamento em relação à média das infeções, em cada onda, e o desfasamento (desf) mede o rácio entre o índice de confinamento e o número de infeções, quando o primeiro ultrapassa o nível 50.

Quadro 1

Fonte: Cálculos do autor

A leitura deste quadro permite-nos retirar conclusões interessantes. Primeiro, os países com um maior grau de restrição em relação aos infetados na I onda foram países da Europa de Leste e Grécia, que tiveram baixos níveis de infeção. Simetricamente, os países que tiveram taxas de infeção mais elevada tiveram também taxas de infeção elevadas, como a Bélgica, Itália, Espanha e Luxemburgo. Portugal também tem um rácio baixo neste indicador. Como os comentadores observam, a Suécia é um caso especial, com um grau de restrição muito baixo. Segundo, no vetor do desfasamento, durante a I onda, foram os países da Europa de Leste a apertar mais cedo as restrições, o que terá contribuído para o achatamento da curva da curva de infetados, e os países com taxas de infeção elevadas atuaram mais tarde e menos intensamente. Terceiro, o grau de restrição baixou significativamente da I para a II onda em todos os países. Quarto, os países com maior grau de restrição na II onda estão novamente entre os que tiveram menores taxas de infeção, como os Bálticos, Finlândia, Grécia e Alemanha, e os que tiveram menor grau são os que tiveram taxas de infeção mais elevadas como Bélgica e República Checa, que virou claramente neste vetor. Quinto, os países que atuaram mais tarde e com menos intensidade (com rácio inferior a .3) foram os países como República Checa, Luxemburgo, Espanha, França e Polónia que tiveram elevadas taxas de infeção, o mesmo aconteceu com Portugal, e os países que atuaram mais cedo foram a Hungria, Chipre, Suécia e Reino Unido, onde à exclusão deste último as taxas de infeção são relativamente baixas.

Podemos, pois, concluir que a generalização dos testes é fundamental para controlar os efeitos mortíferos da pandemia. Uma análise mais fina da política de confinamento também permite concluir que os países que aplicaram restrições mais intensas e mais cedo tiveram um maior êxito na redução das taxas de infeção (achatamento da curva).

Outra política de saúde fundamental é a identificação das cadeias de transmissão. No início da pandemia, ou quando os números de infetados são muito baixos, é fácil esta identificação. Mas à medida que o número de infetados aumenta, está provado através de modelos de propagação da pandemia que é impossível a identificação manual destas cadeias. No início de pandemias, especial atenção é dada aos possíveis portadores do vírus provenientes de locais com elevada prevalência, e em muitos países foram proibidas as entradas de pessoas vindas destas áreas além-fronteiras. Para identificação das cadeias de transmissão foram criadas em vários países equipas de epidemiologistas junto das autoridades locais de saúde.

No entanto, modelos teóricos de propagação do vírus mostram que, a partir de certa fase, é impossível detetar manualmente estas cadeias de infeção, pelo que, começando nos países asiáticos, desenvolveram-se aplicações para deteção de cadeias digitais (digital tracing). Todos os países da UE, à exceção de quatro, desenvolveram estas aplicações a nível nacional, com ou sem ajuda das plataformas internacionais. Devido a preocupações de privacidade, nenhuma destas aplicações na UE funcionou como as de Taiwan ou mesmo da China, não só porque o seu download sendo voluntário nunca chegou a atingir elevada proporção da população (à exceção da Finlândia), ou porque sendo a introdução dos dados a nível individual e voluntária nunca atingiu grande parte dos infetados ativos.

3 Políticas de saúde: tratamento e capacidade hospitalar

Uma vez identificados os infetados, estes devem ser tratados clinicamente. A maioria deve permanecer isolada no seu domicílio, com acompanhamento médico à distância. Mas cerca de 10% ou mais casos com algum grau de gravidade deve ser tratado em hospitais. É evidente que uma primeira regra importante é a definição de quando o paciente se deve dirigir ao hospital, e as condições em que é transportado e internado. Para isso deve haver um sistema de acompanhamento à distância de equipas de médicos e enfermeiros que orientam os pacientes.

Uma vez internados, o tratamento que recebem, e a consequente taxa de letalidade, dependem das equipas de pessoal médico, enfermeiros e técnicos hospitalares bem assim como das camas e equipamentos disponíveis nos hospitais. O Gráfico 5 mostra o número total de camas em hospitais públicos e privados disponíveis por país, segundo as estatísticas para 2018. Os países com maior número de camas por habitante são a Alemanha, Bulgária, Áustria, Hungria e Roménia. E os países com menor número de camas são a Suécia, Dinamarca, Reino Unido, Espanha, Irlanda e Itália. Portugal está em 10ª posição dos países com menos camas. Contudo, se considerarmos apenas os hospitais públicos, devido à política de discriminação contra o setor privado e social, que detém cerca de um terço das camas, o país está entre os piores da UE.

Gráfico 5

Fonte: Eurostat

Quadro 2: Número de camas em unidades de cuidados intensivos por 10 milhões de habitantes

dr

Os casos mais graves de Covid-19 têm de ser tratados em unidades de cuidados intensivos (UCIs), pelo que a sua disponibilidade é particularmente importante quando se dá uma grande intensidade de infeções. O número de camas das unidades de UCIs por habitante varia também bastante entre os países da UE, embora só haja uma correlação de 0,63 entre o número de camas totais e o número de camas nas UCIs. Existe uma certa dificuldade na identificação deste tipo de camas e estudos mais científicosmostram que estas só se podem estimar em forma de intervalo, sobretudo quando se pretendem fazer comparações internacionais.

Existirá alguma relação entre o número de camas disponíveis em hospitais e a taxa de letalidade. O Gráfico 6 mostra uma relação negativa entre estas duas variáveis, ou seja, que quanto maior é o número de camas por habitante menor é a taxa de letalidade, como seria de esperar. Mas a correlação é bastante fraca (0,348).

Gráfico 6

Fonte: Cálculos do autor

4 O caso português: o que correu bem, quais as deficiências e as lições para o futuro

O Gráfico 7 mostra a evolução destas duas políticas com o número de novos casos de infetados para Portugal. O número de testes por infetado cresceu rapidamente no início da I onda e depois baixa, acompanhando a evolução das infeções. Porém, a partir de meados de outubro, deixa de acompanhar a acentuada subida das infeções, colocando o país numa zona perigosa de descontrole da pandemia.

O índice de confinamento calculado pela Universidade de Oxford mostra um forte aperto no início da I onda, seguindo-se um progressivo relaxamento na parte descendente da curva de novos infetados e com a deterioração da situação económica. Em finais de julho, cai para níveis mínimos e só começa a subir novamente em finais de outubro, quando a curva da II onda já está em forte crescimento.

Terão estas regras de confinamento ditadas pelo Governo sido respeitadas pela população? O Gráfico 8 mostra o índice de mobilidade do Google. Como se pode observar, o forte confinamento ditado no início de março foi respeitado pela população, mas a partir de junho a mobilidade é claramente superior ao relaxamento das restrições administrativas.

Gráfico 7

Fonte: ourworldindata Legenda: Lado esquerdo: Infeções diárias por milhão de habitantes; Lado direito: Número de positivos por mil testes, e índice de restrições

Gráfico 8

Fonte: ourworldindata

Pela evolução natural da pandemia, e a dificuldade em termos humanos, sociais e económicos de manter um elevado grau de confinamento, é muito provável que Portugal venha a experimentar uma terceira vaga entre janeiro e abril de 2021. Embora o programa de vacinação possa ser iniciado em janeiro, não é expetável que se atinja um grau de imunidade da população razoável antes do verão de 2021, pelo que será necessário até este período continuar a implementar as políticas preventivas e curativas necessárias.

Por isso, é necessário que as autoridades tirem as ilações necessárias dos dados e aprendam com as lições dos casos de sucesso e evitem os erros do passado. Vamos, pois, dar algumas sugestões, baseados na comparação entre Portugal e a Alemanha, sobre as políticas de saúde para os quatro pilares acima identificados.

O Quadro 3 apresenta as principais medidas das políticas de saúde essenciais para combater a pandemia, agrupadas pelos quatro grupos de políticas. Nas duas colunas da direita indicam-se as classificações que nós atribuímos à qualidade destas medidas em cada país, numa apreciação puramente subjetiva, numa escala de 1 a 10. No total, Portugal soma 57 pontos, contra a Alemanha com 116. O máximo que se pode obter na escala seria 140.

Quadro 3: Performance relativa de Portugal e Alemanha no combate à COVID-19

Fonte: Classificação do autor. Nota: P=Prevenção, D=deteção, C=contenção, T=tratamento, e escala de 1=pior a 10=excelente.

Quanto ao planeamento das políticas, este foi entregue à DGS, com supervisão política da Ministra da Saúde e o respetivo Secretário de Estado. Para a sua formulação trabalham vários grupos de académicos e gabinetes, que se reuniram periodicamente com o Presidente da República, o Primeiro Ministro e vários ministros e outras personalidades. Como foi admitido publicamente, foram cometidos vários erros graves, sobretudo na transmissão destas políticas para o público. A informação transmitida sobre a evolução da pandemia é muito mais limitada do que a transmitida em países como a França, Espanha, Itália e Alemanha. Mais ainda, o acesso a dados fundamentais para os estudos dos investigadores esteve restrito.

Na Alemanha, o planeamento, a recolha e publicação de informação está a cargo do Instituto de saúde pública Robert Koch Institute, que tem elevada reputação científica, e que tem trabalhado em estreita colaboração com as autoridades locais. Conforme se referiu acima, o RKI não só coletou os dados como os disponibilizou à comunidade científica. Apesar da autonomia dos Estados alemães, o governo federal emitiu orientações claras para as medidas de política de saúde em cada fase da pandemia.

Em nossa opinião, a escolha de um instituto académico, de elevada reputação, para liderar a formulação e transmissão das políticas publicas é preferível a uma completa politização destas, como foi feito entre nós. Desta forma, há uma perceção pública de que o processo tem na base cientistas independentes, com reputação assegurada. O aval político destas decisões é depois dado pelo governo e parlamento, nos casos necessários.

Não restam dúvidas de que a primeira medida preventiva é a proibição de reuniões e aglomerados públicos com mais de uma ou escassas centenas de pessoas, tal como foi implementada por todos os países da UE, para evitar a super-propagação. Contudo, em Portugal foram abertas exceções para iniciativas do PCP e de corridas de automóveis, o que não é compreensível.

A formulação das medidas de confinamento assume uma especial importância. Os primeiros estudos de economistas apontavam para a necessidade de haver uma política drástica inicial e generalizada para travar a propagação, mas estudos mais recentes e com base em dados estatísticos a nível micro mostram que medidas drásticas de confinamento geral não são nem necessárias nem suficientes para o combate à pandemia. O que é necessário é manter um nível elevado de testes, manter regras básicas de higiene, máscaras e distanciamento social, e fazer confinamentos seletivos e orientados. Além disso, é necessário tomar em conta o trade-off entre os custos económicos e os riscos de contágio dos diferentes grupos e atividades: idealmente deve maximizar-se a utilidade sujeito a que o R seja menor que 1.

Neste sentido, as primeiras medidas a implementar são as com maior utilidade por risco de contágio. Assim, a primeira é a obrigação do teletrabalho, quando este é possível. A segunda, a proibição ou condicionamento de atividades de lazer, como bares, clubes noturnos, manifestações desportivas ou culturais. A terceira é manter as empresas em funcionamento, recomendando o respeito das regras de higiene básicas. Também se devem manter as escolas abertas, e sobretudo as do ensino obrigatório. É evidente que se devem restringir as entradas de passageiros nas fronteiras de áreas especialmente infetadas, através da exigência de teste ou de quarentena. As restrições de mobilidade interna, tais como recolher obrigatório e restrição de mobilidade para ou de áreas do país com surtos graves devem também ser implementadas de acordo com a gravidade da situação.

O nível de testagem em Portugal cresceu bastante com o decorrer da pandemia, mas tornou-se claramente insuficiente na II onda. Também tem havido uma certa relutância na introdução de testes rápidos de deteção de infeções, sobretudo para os grupos mais vulneráveis, o que é um erro. É necessário que haja a perceção de que existe um trade-off entre a política de testes e a de confinamento. Assim, os testes devem ser gratuitos e o mais generalizado possível. A construção de centros drive-through para testes deu muito bons resultados em vários países, ao evitar as filas e facilitar a deslocação, exemplo que já deveria ter sido implementado entre nós de forma mais afirmativa.

Mas o falhanço de política mais dramático foi a falta de prioridade aos testes e isolamento nos lares de idosos, de que as autoridades são responsáveis, e que ainda se continua a verificar nalgumas localidades. Este é uma das principais diferenças com países como a Alemanha.

Outra deficiência foi a constituição de equipas treinadas e em número suficiente junto das autoridades de saúde locais (a nível pelo menos de município) para identificação das cadeias de infeção. Para esta mesma função foi criada a app Stayaway COVID, já descarregada por 2,3 milhões de pessoas. Contudo, esta é ineficaz, com apenas 3% de registo de infetados. O problema é que o registo é voluntário, e o seu funcionamento depende da introdução de um código fornecido pelo médico assistente ao paciente. Também seria necessária uma utilização da app por mais de 60-70% da população para ter algum grau de eficácia.

Sabíamos que as nossas infraestruturas hospitalares não eram suficientes para enfrentar a pandemia, mas não houve planeamento, nem implementação dos investimentos, medicamentos, material protetor e pessoal suficiente para tratar os doentes infetados. Mas mais grave ainda, depois da I onda já se deveriam ter detetado estas deficiências e preparado o país para a II onda, e isso não aconteceu.

Estas insuficiências revelaram-se particularmente gravosas no adiamento dos tratamentos às doenças não-Covid, que afetou particularmente os doentes crónicos e urgentes. O problema não só foi real como fez criar nas populações o medo de aceder aos serviços de saúde, por medo de contágio ou pelo congestionamento dos serviços. Esta deficiência veio a revelar-se no elevado excesso de mortes que as estatísticas revelam para Portugal, e que é inexistente no caso alemão.

Outro erro grave foi a reserva ao SNS dos tratamentos da Covid-19, na medida em que a capacidade deste é apenas de cerca de 2/3 da capacidade hospitalar do país. Houve assim, uma falha na utilização eficiente dos recursos e que prejudicou gravemente áreas mais afetadas pela pandemia.

Finalmente, já deveria ter sido definido e tornado público o plano de vacinação contra a Covid-19. Os EUA já têm no terreno uma task force constituída para o efeito, e dirigida por uma general, pois os oficiais têm formação em logística e estão preparados para situações de emergência. A WHO já publicou um documento sobre o assunto, o Centre for Disease Control americano já emitiu orientações para a vacinação da população em cooperação com a National Academy of Medicine, e a instituição congénere europeia (ECDC) também já publicou algumas grandes linhas.

Existem três programas básicos a elaborar. Primeiro, um Plano geral de aquisições, dado a escassez a nível mundial e a necessidade de assegurar a encomenda, compra e abastecimento a tempo das diferentes empresas farmacêuticas, transporte para o país e armazenagem em pontos centrais, visto que em geral o transporte será por via aérea. Países como os EUA, Alemanha e Reino Unido já têm assegurada a encomenda de milhões de doses, que começam a estar disponíveis, depois da aprovação dos reguladores. Repare-se que certas vacinas requerem instalações frigoríficas abaixo dos 70 graus C. Segundo, um Plano logístico de distribuição das vacinas dos pontos centrais a nível nacional por centros regionais e locais para depois ser distribuída localmente e depois a sua distribuição pelos locais de administração das vacinas. Não há dúvida que o sistema de administração mais vasto é o sistema nacional de farmácias. É, pois, um erro, de origem ideológica na orientação deste Governo, reservar a ministração da vacina da Covid-19 aos centros de saúde. Terceiro, um Plano de administração da vacina pela população, que deve ser seguido conforme a disponibilidade de vacinas chega ao país. A figura 1 mostra a proposta americana de administração, distribuída por 4 fases.

Figura 1

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A primeira fase é de administração ao pessoal de saúde com elevado risco, e que evidentemente deve ser feita pelos hospitais. A segunda fase é a dos idosos e pessoas de elevado risco, e em especial dos lares de idosos, que deverá ser administrada por pessoal de saúde que se desloca aos lares e com depósitos nos hospitais. Os doentes e pessoas de alto risco deveriam ser vacinadas em centros de saúde com receita médica. As fases seguintes já começam a alargar a vacinação a camadas cada vez mais largas da população, pelo que deveriam ser feitas pelas farmácias e centros de saúde, sem discriminação. A segunda fase começa com professores do ensino obrigatório e trabalhadores de alto risco e casos especiais, como prisões. A terceira fase já é alargada aos jovens e outros trabalhadores e a quarta é para a restante população.

5 Conclusões

Existe uma larga diferença no sucesso de combate à pandemia de Covid-19 entre os países da UE, em que Portugal figura numa situação intermédia. Este estudo confirma a importância dos testes e das medidas de confinamento orientadas e calibradas à situação de momento da pandemia. Também mostra evidência estatística da relevância das infraestruturas de saúde para a baixa letalidade. Não tendo nenhum dos países da UE seguido o modelo asiático mais interventivo na sociedade de testagem, digital tracing e isolamento das populações, o confinamento surge como alternativa essencial. Vimos os princípios que devem presidir à sua definição. Outra contribuição fundamental deste artigo é na identificação dos pontos fracos das estratégias de saúde pública seguidas em Portugal, em contraste com os países de sucesso, nomeadamente a Alemanha. Finalmente, dão-se várias sugestões para o aperfeiçoamento das políticas públicas, nomeadamente para uma possível terceira onda pandémica e para a vacinação da população, o que poderá levar a uma solução da atual crise pandémica