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SOPA Images/LightRocket via Gett

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O grande sucesso dos EUA nas vacinas contra a Covid e o falhanço da UE. O que é preciso reformar para preparar a União da Saúde?

Comparando a forma como Estados Unidos e União Europeia anteciparam, programaram e investiram nas vacinas, as conclusões não deixam dúvidas. Agora é preciso retirar lições. Ensaio de Abel Mateus.

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Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.

À medida que se vão conhecendo mais detalhes sobre as estratégias de investigação, desenvolvimento, produção e vacinação contra o COVID-19, começa a ser evidente o que resultou ou falhou nas políticas industriais de coordenação das empresas. E aqui é inegável o êxito das políticas dos EUA prosseguidas por Trump e as limitações e fraquezas da UE. É bastante difícil ter uma visão técnica e exata do que se passou nas estratégias adotadas para a invenção das vacinas e sua subsequente produção, pois muitas das medidas tomadas foram envoltas num certo secretismo e visão nacionalista. 

É evidente que os líderes das maiores potencias mundiais estavam conscientes que enfrentavam uma guerra biológica, dados os efeitos sanitários graves e que vêm devastando as nossas economias. Tratava-se e ainda se trata do maior desafio à sua liderança. E os resultados estão à vista. Biden fez da vacinação a sua bandeira dos primeiros 100 dias e anunciou que em abril os EUA já disporão de vacinas para todos os cidadãos; a popularidade de Boris Johnson sobe e é aproveitada para confirmar a razão do Brexit; e na União Europeia as populações começam a revoltar-se, cansadas de sucessivos lockdowns e perante a inoperância da Comissão e dos seus governos nacionais. 

Primeiro, foi a inoperância das suas políticas de controlo da pandemia em relação aos países asiáticos. As estatísticas são avassaladoras: a China teve 70 casos e 3 mortes por milhão de habitantes, enquanto os EUA tiveram 90.873 casos e 1.652 casos e a UE 58.012 casos e 1.353 mortes, respetivamente (dados consultados em 26 de março). As políticas dos países asiáticos assentam sobre testagem, identificação de cadeias de transmissão e isolamento, que entre nós poderiam ser aplicadas de forma mais consentânea com os nossos valores, mas nenhum país ocidental o conseguiu. 

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As vacinas são e serão utilizadas como importante instrumento nas jogadas geoestratégicas a nível mundial. Os EUA começaram a disponibilizá-las em pequenas quantidades ao Canadá e México, e o Reino Unido, com a sua ligação à Índia, está a prometer a sua difusão pelos países em vias de desenvolvimento, assim como a Rússia e China também as estão a exportar seletivamente.

Segundo, perante este falhanço, a mensagem dos políticos era de que com a descoberta das vacinas teríamos o problema resolvido nos primeiros meses de 2021. E perante esta expetativa não é de esperar uma reação de protesto das populações? Não tenhamos ilusões, as vacinas são e serão utilizadas como importante instrumento nas jogadas geoestratégicas a nível mundial. Os EUA começaram a disponibilizá-las em pequenas quantidades ao Canadá e México, e o Reino Unido, com a sua ligação à Índia, está a prometer a sua difusão pelos países em vias de desenvolvimento, assim como a Rússia e China também as estão a exportar seletivamente.

Para podermos ter uma opinião formada e assente em dados técnicos vamos analisar a campanha dos EUA e confrontá-la com a da UE de forma a poder identificar os erros e fazer propostas de lançamento de uma verdadeira União da Saúde, que em nossa opinião é a única fuga em frente que os nossos líderes devem prosseguir. 

epa09035706 European Council President Charles Michel and European Parliament President David Sassoli with other EU leaders on screen at the start of a EU Council two-days video conference on the COVID-19 pandemic, in Brussels, Belgium, 25 February 2021. EU leaders will take stock of the epidemiological situation. They will continue working to coordinate the response to the COVID-19 pandemic, focusing in particular on the authorisation, production and distribution of vaccines and the movement of persons.  EPA/OLIVIER HOSLET / POOL

O Conselho Europeu reunido por video conferência durante dois dias em fevereiro, no pico da vaga da pandemia, para discutir a Covid-19

OLIVIER HOSLET / POOL/EPA

A Operação Warp Speed (OWS)

A operação Warp Speed foi lançada por Trump a 15 de maio de 2020, cerca de 3 meses depois do início da pandemia nos EUA. Como COO foi designado o general Gustave Perna e como principal conselheiro Moncel Slaoui, especialista em capital de risco (venture capital), que tinha presidido ao desenvolvimento de cinco vacinas na GSK. A missão deste grupo era implementar um programa nacional para acelerar o desenvolvimento, manufatura e distribuição de vacinas em janeiro de 2021, bem assim como terapias e diagnósticos. A OWS está organizada em diversos departamentos liderados por especialistas técnicos e médicos. 

A investigação e testagem em larga escala de uma vacina é um projeto muito caro e que exige recursos logísticos substanciais, pelo que era fundamental o auxílio de Estado planeado, o envolvimento de especialistas em capital de risco e uma parceria entre as grandes farmacêuticas e o Estado.

A OWS é uma parceria público-privada para coordenar as atividades de múltiplas agências governamentais, entre o Departamento da Saúde e Serviços Humanos (HHS), compreendendo a Biomedical Advanced Research and Development Authority (BARDA), NIH, FDA, CDC, e o Departamento da Defesa (DoD), compreendendo a Defense Health Agency, Defense Enabling Biotechnologies e Defense for Acquisition Enablers, e outras agências e empresas privadas. Com um orçamento inicial de 10 mil milhões de dólares, foi reforçado em outubro para 18 mil milhões.

A investigação e testagem em larga escala de uma vacina é um projeto muito caro e que exige recursos logísticos substanciais, pelo que era fundamental o auxílio de Estado planeado, o envolvimento de especialistas em capital de risco e uma parceria entre as grandes farmacêuticas e o Estado. A OWS estabeleceu que seriam selecionados inicialmente 14 projetos de vacina, e que depois de vários processos de screening acabariam por ser escolhidas 3 a 5 candidatas para testagem aleatória em grande escala. Simultaneamente, a OWS disponibilizou financiamento para a construção de instalações e equipamentos necessários para o fabrico em larga escala destes 3 a 5 candidatos finais. Finalmente, o Departamento da Defesa estaria envolvido na criação da logística de distribuição da vacina pelos locais de vacinação. 

O Quadro 1 mostra os montantes gastos no processo para a OWS realizar a sua missão nas três fases identificadas: 1) aceleração da investigação em empresas de biotecnologia ou institutos universitários; 2) testagem e ensaios clínicos em larga escala, conduzidos por empresas especializadas, e a sua submissão às agências regulatórias; 3) demonstração da capacidade de produção da vacina, que envolve o design e fabrico de equipamentos e pessoal especializados; e, finalmente, 4) instalação da cadeia de produção de múltiplos fornecedores e início da produção em larga escala. O quadro foi compilado com base no levantamento feito por Brown e Bolliky, do Peterson Institute, e mostra que, até hoje, a OWS já despendeu 20,3 mil milhões de dólares, distribuídos por investigação e desenvolvimento (2,6 mil milhões), testagem (2 mil milhões), cadeia de produção (6,2 mil milhões) e aquisição de 500 milhões de doses de vacinas (9,4 mil milhões).

Como o quadro mostra, a OWS escolheu um conjunto restrito de farmacêuticas onde concentrou os recursos para financiamento da aceleração do desenvolvimento da vacina (Moderna e Johnson&Johnson) e um contrato para o fornecimento em larga escala com a Pfizer logo no 1º e 2º trimestre de 2020, e um substancial financiamento da investigação à AstraZeneca no 4º trimestre de 2020, já quando esta estava na fase final de testes. Todas estas vacinas já foram aprovadas. Dos projetos financiados, já se encontra em fase adiantada a testagem da Novavax, mas as vacinas da Sanofi/GSK têm sofrido várias vicissitudes e só se esperam resultados no final de 2021. 

Da invenção da vacina à instalação da capacidade de produção de milhões de doses por mês

A 17 de março de 2020, a Pfizer anunciou que tinha formado uma parceria com a BioNTech para desenvolverem uma vacina do tipo mRNA. A 29 de abril começaram os primeiros testes e a 9 de novembro apresentaram os resultados dos testes de 3ª fase com 90% de eficácia, tendo sido aprovada para uso a 2 dezembro pelo Reino Unido, a 11 pelos EUA e a 21 pela UE. Entre o início da investigação e a aprovação decorreram cerca de 9 meses, o que é um dos maiores sucessos na história da medicina, quando normalmente as vacinas levam entre 5 e 10 anos a desenvolver. A segunda empresa iniciar os testes foi a Moderna, a 27 de julho, e depois foram a AstraZeneca, Novavax e Johnson&Johnson, entre finais de agosto e setembro de 2020.

Os EUA utilizaram em quase uma dezena de ocasiões o Defense Production Act (DPA), que dá ao Governo a possibilidade de intervir numa empresa privada para reservar capacidade de produção ou aceitar contratos com o Estado, sobrepondo-se a quaisquer outros contratos com outras empresas, para resolver problemas da cadeia de produção.

Mas, como a Figura 1 mostra, são necessários 4 estádios para a disponibilização das vacinas: criação, manufatura, embalagem e distribuição. 

Já em julho de 2020, a OWS contratou com a Pfizer/BioNTech a entrega de 100 milhões de doses da vacina, e esta encomenda permitiu-lhe não só acelerar a testagem como iniciar o investimento na capacidade de produção em três fábricas: matérias-primas em Missouri que depois são expedidas para Massachusetts onde o medicamento é fabricado e depois transformado em vacina e embalado em Michigan. 

Foi fundamental também a política industrial para criar a capacidade de produção em tempo recorde. A OWS foi instrumental para expandir a capacidade de produção ao longo de uma cadeia de produção fragmentada. Basta um elo da cadeia quebrar para interromper toda a manufatura. O processo requer fornecimentos adequados de uma vasta variedade de inputs especializados – desde equipamentos de alta tecnologia, como bioreatores e bombas de filtragem, até consumíveis como lípidos coadjuvantes. Nas embalagens requerem-se os frascos de vidro e, na administração das vacinas, seringas, agulhas e material de proteção do pessoal de saúde. Na cadeia de produção estão envolvidas quase uma centena de empresas, das quais mais de duas dezenas receberam auxílio da OWS.

O retorno social destes investimentos é muito elevado: a análise benefício/custo mostra que para um subsídio de 6 a 40 dólares por lote de vacinas, o benefício social é de 5.800 dólares. Esta simples estatística mostra a enorme importância destas políticas públicas.

Os EUA utilizaram em quase uma dezena de ocasiões o Defense Production Act (DPA), que dá ao Governo a possibilidade de intervir numa empresa privada para reservar capacidade de produção ou aceitar contratos com o Estado, sobrepondo-se a quaisquer outros contratos com outras empresas, para resolver problemas da cadeia de produção.

Por exemplo, o financiamento inicial da OWS à Moderna permitiu à Lonza correr o risco e construir uma fábrica em Portsmouth nos EUA. A OWS reservou-a, contratando outras instalações de manufatura como a Emergent Biosolutions em Maryland, em maio de 2020, e a Fujifilm Diosynth Biotechnologies, em julho no Texas, assegurando que estariam disponíveis assim que as candidaturas a vacinas tivessem passado o obstáculo da aprovação regulatória. A Grand River Aseptic Manufacturing em Michigan foi contratada para fazer o fabrico final e embalagem. E, em março de 2021, a OWS expandiu ainda mais a capacidade contratando a Merck para finalizar o fabrico e embalar as vacinas da Johnson&Johnson.

epa09062731 US President Joe Biden (L) and Veterans Affairs (VA) Secretary Richard McDonough (R) visit a VA COVID-19 vaccine center in Washington, DC, USA, on 08 March 2021.  EPA/KEVIN DIETSCH / POOL

O esquema montado ainda na administração Trump e reforçado por Biden permitirá aos EUA ter a vacinação praticamente completa antes do verão

KEVIN DIETSCH / POOL/EPA

A OWS não só comprou os inputs que estas empresas iriam necessitar para fabricar a vacina, também despendeu centenas de milhões de dólares a contratar a expansão da capacidade de produção das empresas que produziam os inputs. O retorno social destes investimentos é muito elevado: a análise benefício/custo mostra que para um subsídio de 6 a 40 dólares por lote de vacinas, o benefício social é de 5.800 dólares. Esta simples estatística mostra a enorme importância destas políticas públicas.

A complexidade do fabrico da vacina e a rede de fornecedores na América do Norte e Europa

As vacinas da Pfizer e Moderna são baseadas na tecnologia chamada mRNA, enquanto a AstraZeneca e a Johnson&Johnson são baseadas no adenovírus. É a primeira vez que se fabricam vacinas baseadas no mRNA. Esta substância é obtida do núcleo do DNA, através de trifosfatos e catalisado por enzimas. O mRNA obtido é então filtrado e encapsulado em esferas de lípidos, que é o processo mais complexo, para conseguir transportar a molécula para o sangue humano. No caso da Moderna, o fornecimento dos lípidos é feito pela Merck e a Evonik Industries, e no processo de formulação destes estão a Dermapharm na Alemanha, a Acuitas Therapeutics no Canadá e a Polymun Scientific Immunbiologische Forschung na Áustria, o que mostra como a cadeia de produção está dispersa pela América do Norte e pela Europa.

Existem até à data três fábricas que fornecem vacinas à UE. A Pfizer produz a sua vacina em Puurs na Bélgica, na região de Bruxelas, a partir da qual fornece tanto a UE como o Reino Unido e exporta para vários países do mundo. A AstraZeneca produz vacinas em Seneffe, na Bélgica, e em menor quantidade em Leiden, na Holanda. A AstraZeneca trabalha com fornecedores em 15 países para produzir a vacina.

Só umas cinco a seis das grandes farmacêuticas têm capacidade de manufatura das vacinas mRNA. Por exemplo, a Moderna que era uma startup no início da pandemia, conseguiu com o apoio da OWS desenvolver a sua capacidade de produção. Planeia fabricar mil milhões de doses até finais de 2021 nas fábricas da Lonza de Portsmouth nos EUA e em Visp na Suíça. O último estádio de fabrico e embalagem é feito pelos parceiros Catalent, nos EUA, e Rovi, em Espanha.

A produção de vacinas nos EUA está a registar forte expansão, respondendo ao objetivo de Biden de aplicar três milhões de vacinas por dia. A Pfizer passou de uma produção de cinco milhões por semana no começo de fevereiro, para 13 milhões em finais de março. A Moderna já está a produzir cerca de 10 milhões de doses por semana, depois de instalar mais uma fábrica em Massachusetts. Estes aumentos de produção foram possíveis depois de resolver vários estrangulamentos na cadeia de produção e treinar pessoal altamente especializado. Depois da vacina da J&J ter sido autorizada, houve vários problemas no lançamento da produção que já estão resolvidos, e a farmacêutica deve fornecer 20 milhões de doses até ao final de março. 

De acordo com o WSJ, a produção das três vacinas autorizadas deve atingir 132 milhões de doses no mês de março, o triplo dos 48 milhões fabricados em fevereiro. Isto sem contar com a produção da AstraZeneca nos EUA, que continua a aguardar autorização.

Existem até à data três fábricas que fornecem vacinas à UE. A Pfizer produz a sua vacina em Puurs na Bélgica, na região de Bruxelas, a partir da qual fornece tanto a UE como o Reino Unido e exporta para vários países do mundo. A AstraZeneca produz vacinas em Seneffe, na Bélgica, e em menor quantidade em Leiden, na Holanda. A AstraZeneca trabalha com fornecedores em 15 países para produzir a vacina.

epa08811167 Pedestrians walk on Westminster Bridge in London, Britain, 10 November 2020. The UK remains in its second national lockdown. This comes as news reports state that Covid-19 related deaths in Britain have increased by 46 percent in less than a week. Meanwhile British Prime Minister Boris Johnson has sated that a vaccine could be available by Christmas.  EPA/ANDY RAIN

O Reino Unido ganhou avanço na Europa na estratégia de vacinação

ANDY RAIN/EPA

A EMA autorizou recentemente a expansão da produção em Leiden. Uma nova fábrica da Pfizer/BioNTech em Marburg, na Alemanha, está a ser construída para a produção da substância ativa e do produto final/embalagem. A Moderna iniciou a sua produção na fábrica na Suíça, sendo a última fase de fabrico na Espanha. E a vacina da J&J será fabricada igualmente na Holanda. 

Os problemas na estratégia da UE e da Comissão Europeia

A estratégia delineada pela Comissão Europeia para as vacinas contempla algumas das componentes da OWS, mas está longe de conter o detalhe e sobretudo a abrangência e a profundidade das medidas da OWS. 

Bruxelas lançou o Instrumento de Suporte de Emergência (ESI) de 2,7 mil milhões de euros para financiar as vacinas. O ESI dava oportunidade aos 27 Estados membros mais a Noruega de comprarem uma dada quantidade de vacinas dentro de um certo prazo e a um dado preço. Em contrapartida, destinava-se a apoiar os custos de desenvolvimento das vacinas com o pagamento antecipado das aquisições de vacinas pelos próprios Estados. A reduzida dimensão deste fundo, sobretudo em comparação com os EUA, e a incapacidade de a Comissão tomar riscos financeiros acabaram por se revelar fatais.

O processo para a criação de vacinas contra a Covid-19 através de contactos governamentais com as grandes farmacêuticas por um grupo ad hoc constituído pela Alemanha, França, Itália e Holanda terminou com a decisão, em meados de junho de 2020, de atribuir à Comissão Europeia a missão de negociar o fornecimento de vacinas em nome dos 27 membros da UE mais a Noruega.

Em junho de 2020, Bruxelas lançou o Instrumento de Suporte de Emergência (ESI) de 2,7 mil milhões de euros para financiar as vacinas. O ESI dava oportunidade aos 27 Estados membros mais a Noruega de comprarem uma dada quantidade de vacinas dentro de um certo prazo e a um dado preço. Em contrapartida, destinava-se a apoiar os custos de desenvolvimento das vacinas com o pagamento antecipado das aquisições de vacinas pelos próprios Estados. A reduzida dimensão deste fundo, sobretudo em comparação com os EUA, e a incapacidade de a Comissão tomar riscos financeiros acabaram por se revelar fatais.

A Comissão estabeleceu acordos de compras antecipadas (Advanced Purchase Agreements – APAs) com a AstraZeneca a 14 de agosto, com a Sanofi-GSK a 18 de setembro, com a Johnson & Johnson’s (J&J) Janssen Pharmaceutica NV a 8 de outubro, com a BioNTech/Pfizer a 11 de novembro, com a CureVac a 17 de novembro, e com a Moderna a 25 de novembro. No total, até hoje, a Comissão tinha estabelecido contratos para compras potenciais de 2,6 mil milhões de doses. Porém, como se revela, isto são apenas números, e estão longe de ser fabricados, quanto mais administrados às pessoas.

Todos os Estados-membros estão representados no comité de coordenação que assiste a Comissão na formulação e negociação dos APAs, embora apenas um pequeno comité os negoceie com as farmacêuticas. Aparentemente, está lá tudo: pagamentos esperados, preços e condições de fornecimento, manufatura na UE e responsabilidade de riscos da vacina. O problema são os detalhes que se vão conhecendo a pouco e pouco, uma vez que estes não são públicos. Vejamos alguns exemplos. Não tendo capacidade financeira para assumir os riscos médicos das vacinas, esta foi passada para as farmacêuticas, ao contrário por exemplo dos acordos assinados por Israel. A Comissão só reduziu parte daquela responsabilidade contra a obrigação das farmacêuticas fornecerem a vacina ao preço de custo para os países subdesenvolvidos no âmbito da COVAX.

President Ursula von der Leyen Vaccine Passport News Conference

Nem com ameaças às farmacêuticas, como a AstraZeneca, a presidente Ursula von der Leyen conseguiu travar a polémica das vacinas na UE

Bloomberg via Getty Images

E, na altura crucial para assegurar a capacidade de produção das vacinas, os líderes da União Europeia passaram grande parte do tempo a discutir o programa Next Generation. Não compreenderam que o desenvolvimento e produção rápida da vacina, independentemente de quão custoso, seria muito menos custoso do que os efeitos macroeconómicos de sucessivos lockdowns.

Aliás os recursos financeiros disponibilizados são ínfimos em relação à OWS. Não considerando os APAs e os custos de aquisição da vacina, a Comissão terá despendido até agora 148 milhões de euros distribuídos por 36 projetos de investigação da vacina, o BEI terá dado empréstimos de 100 milhões de euros à BioNTech e 75 à CureVac. São estes os montantes que conseguimos recolher do site da Comissão. Ora, a OWS investiu, como se pode constatar no quadro acima, cerca de 10 mil milhões de dólares no desenvolvimento, testagem e investimentos em capacidade produtiva.

Principais erros da Comissão Europeia

Não há dúvida de que a estratégia da Comissão de tomar a licitação das vacinas a seu cargo foi a correta, pois evitou a “corrida às vacinas” entre os Estados membros, o que levaria a grandes rivalidades entre estes e a possíveis injustiças. Mas, o principal problema foi a Comissão Europeia ter arrestado o trabalho do grupo ad hoc de países membros da UE, sem ter criado ou se assegurado que tinha os instrumentos necessários para cumprir a sua missão: acelerar o processo de investigação e desenvolvimento, testagem e assegurar a capacidade de produção.

Os principais erros da Comissão Europeia foram:

  • Problemas de liderança da campanha para a invenção da vacina, testagem e estabelecimento da cadeia de produção (venture capitalista);
  • Não ter instituições como o Defense Advanced Research Projects Agency (DARPA) que tem desempenhado um importante papel no desenvolvimento de tecnologias emergentes, não só para usos militares como também civis;
  • Não dispor de instrumentos de mobilização da capacidade produtiva em situações de emergência (guerra);
  • Não ter concentrado o financiamento e estabelecido partenariado com as grandes farmacêuticas com maior capacidade de I&D e com maior probabilidade de sucesso, com o tempo suficiente;
  • Graves deficiências na negociação e elaboração dos contratos de fornecimento das vacinas: liability do produto, especificação de datas, metas de entrega e penalizações de não cumprimento, comprometer os produtores na COVAX;
  • Negociação de preços mais baixos do que concorrentes: Israel pagou 23 euros por dose da vacina da Pfizer-BioNTech, contra os 12 euros pagos pela UE. E no caso dos EUA, considerando todos os custos envolvidos e reportados no quadro acima, o preço estimado é de 40 dólares por dose;
  • Dispersão de financiamento em I&D por múltiplos pequenos projetos de centros de investigação;
  • Não ter abordado a campanha de uma forma integrada: desde a criação da vacina à sua distribuição;
  • Não dispor de financiamento em volume, flexibilidade e rapidez suficiente para atuar de forma eficaz em todos os estágios. 

Reformas: a necessidade de instituições e política de saúde comunitárias

Confrontada com a expetativa de uma pandemia prolongada e a emergência de novas variantes do vírus ainda mais mortais, a UE tem de fazer melhor. O problema principal foi que a Comissão Europeia assumiu responsabilidades sem ter consciência do que seria necessário em termos de recursos e de poderes para cumprir a missão em conjugação com o facto de não ser claro que responsabilidades eram da Comissão e dos Estados-membros.

Só depois da crise financeira global e do euro a UE avançou para criar a união bancária. Esperemos que, depois da crise pandémica, os líderes europeus estejam à altura do desafio para criar as bases de uma união da saúde em casos de emergência.

A OWS assentou em dois departamentos que não existem a nível comunitário: o departamento da defesa e o da saúde. Por isso, seria difícil replicar a experiência americana na UE. Mas isso não significa que esta não procure responder aos desafios que se colocam e elaborar um mapeamento para reformas futuras. Só depois da crise financeira global e do euro a UE avançou para criar a união bancária. Esperemos que, depois da crise pandémica, os líderes europeus estejam à altura do desafio para criar as bases de uma união da saúde em casos de emergência. Para tal, a UE deveria criar uma comissão de especialistas para propor as novas instituições e as reformas necessárias numa nova fase da integração europeia, como o fez com a Comissão Lamfalussy. 

A proposta da Autoridade para Resposta a Emergências Sanitárias – Health Emergency Preparedness and Response Authority (HERA) — é de louvar, e poderá ajudar a resolver problemas futuros de coordenação entre os Estados-membros e a Comissão. Mas necessita de ser dotada financeiramente com recursos próprios para evitar os problemas enfrentados pela Comissão. E tem que recrutar pessoal com elevada experiência do setor privado para supervisionar o dispêndio de largas somas de recursos dos contribuintes europeus. Mais ainda, a Autoridade tem que ter capacidade para financiar a aceleração e desenvolvimento da vacina, testagem e escalar desde cedo a capacidade de produção. Sem esta visão integrada e de uma política industrial ativa não será possível preparar a UE para emergências futuras. Esta e outras iniciativas são fundamentais para a construção da União da Saúde. 

Professor Universitário de Economia. Doutorado pela Universidade de Pennsylvania, EUA. Foi economista sénior do Banco Mundial e administrador do Banco de Portugal. Presidiu à Autoridade da Concorrência

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