Há dois tipos de políticos: os que se regem por princípios morais e os que actuam em função das conveniências, ou seja, os PPP, ‘Políticos Pôncio Pilatos’ (Observador, 9-1-2021).

Pôncio Pilatos, apesar de ter condenado Jesus à morte, era um bom homem, mas não, decididamente, um homem bom. Ele fez quase tudo o que podia para libertar Cristo, excepto o que devia ter feito, que era libertá-lo, por saber que estava inocente. Um bom homem faz coisas boas, mas não faz o bem, que só um homem bom é capaz de fazer.

De facto, Pilatos fez muitas coisas boas. Por exemplo, inicialmente não quis julgar Jesus, por se tratar de uma questão religiosa, em que não era competente.

Para ultrapassar este inconveniente, os sacerdotes alteraram a queixa, dizendo que Jesus de Nazaré se intitulava Rei dos Judeus. Este título punha em causa o imperador romano e, por isso, o seu representante não poderia ficar indiferente. Cristo confirmou a sua realeza, mas, como não atentava contra a dominação romana na Palestina, não se justificavam medidas repressivas contra o inofensivo Rei dos Judeus.

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Depois, Pôncio Pilatos enviou Jesus a Herodes porque, sendo de Nazaré, que fica na Galileia, estava sob a sua jurisdição. Mas Herodes, não tendo conseguido que Jesus lhe respondesse, devolveu-o a Pilatos.

Mais tarde, como era costume conceder, por ocasião da Páscoa judaica, a amnistia de um condenado, Pilatos pensou recorrer a esta tradição, para libertar o Nazareno. Também não resultou, porque a multidão, devidamente manipulada, pediu a libertação de Barrabás e a condenação de Jesus.

Esta sucessão de malogros evidencia a boa intenção de Pôncio Pilatos, mas também a sua fraqueza e cobardia. Sabia que Jesus era inocente e que, portanto, o não podia condenar à morte. Mas deixou-se vencer pelo medo e, em vez de seguir a sua consciência, preferiu agradar à multidão.

Há uns anos, um jornalista, pouco versado em questões bíblicas, referiu-se a um barco com lixo tóxico que procurava um porto que o recebesse. Mas, em vez de usar a expressão proverbial ‘de Anás para Caifás’, disse que o dito andava de Pôncio … para Pilatos! A gaffe era certeira, pois expressava a duplicidade do magistrado romano, dividido entre as exigências da sua consciência e as conveniências políticas.

As idas e vindas de Jesus, bem como os expedientes utilizados por Pôncio Pilatos para evitar uma decisão que, embora evidente em termos éticos, lhe era politicamente penosa, evocam as idas e vindas do diploma que pretende despenalizar e legalizar a eutanásia. Neste conturbado processo, a Assembleia da República (AR) tem-se portado como o novo Sinédrio; o Tribunal Constitucional (TC) é como se fosse o sumo sacerdote Caifás, ao qual competia aplicar a Lei de Deus; e o Presidente da República (PR), a quem cabe a decisão final, representa o papel desempenhado por Pilatos.

Talvez alguém possa objectar que o Chefe de Estado não pode deixar de promulgar o diploma em causa, se ele for confirmado pela maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções. Contudo, à pergunta: “Caso o Parlamento envie novamente para a Presidência da República a lei tal como está, sem alterações, o Presidente é obrigado a promulgar?”, o Professor Paulo Otero, Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, respondeu: A meu ver não é. O Presidente não é obrigado a promulgar, por duas ordens de razões. Primeiro, porque ainda pode desencadear a fiscalização preventiva, e o fundamento deste veto político abre caminho para essa possibilidade. Segundo, a meu ver, o Presidente pode, por razões de objeção de consciência, recusar legitimamente a promulgação.” (Rádio Renascença, 19-4-2023). Com efeito, embora o nº 6 do artigo 41º da Constituição afirme que “é garantido o direito à objecção de consciência, nos termos da lei”; no seu nº 1 diz-se que “a liberdade consciência, de religião e de culto é inviolável”.

Mesmo que tenha essa prerrogativa constitucional, a não promulgação não seria um desrespeito pela AR, como afirmou a deputada socialista Isabel Moreira? Sucede que os deputados, que votaram a legalização da morte medicamente provocada, não o fizeram enquanto representantes dos seus eleitores, porque uma tal questão não foi ‘referendada’ nas últimas eleições legislativas e os dois maiores partidos, PS e PSD, deram liberdade de voto aos seus deputados que, portanto, votaram, apenas e só, em função das suas convicções pessoais, ou seja, de acordo com a sua consciência.

Assim sendo, também o Chefe de Estado, nesta matéria, pode e deve actuar de acordo com a sua consciência e em função dos seus próprios princípios éticos e morais, conhecidos pelos portugueses que, por esta razão, o elegeram e reelegeram para o cargo que ocupa. Decerto, o PR defraudaria o país se, em vez de proceder com a coerência que agora se lhe exige, actuasse em função de critérios de alegada oportunidade política.

A este propósito, não será demais recordar que o actual diploma viola o artigo 24º da Constituição da República Portuguesa, que estabelece, sem excepções, a inviolabilidade da vida humana – “a vida humana é inviolável” (nº 1) – como recordou o Desembargador Pedro Vaz Patto, Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz (RR, 19-4-2023). Mais ainda, em termos técnicos, este diploma, não obstante os reparos do PR e do TC, ainda padece de numerosas deficiências. Como muito bem aqui escreveu a jurista Teresa de Melo Ribeiro (A legalização da eutanásia não trará paz, nem terrena, nem eterna”, Observador, 19-4-2023), são tantas as insuficiências técnicas do texto que o PR, se quisesse, não teria nenhuma dificuldade em encontrar numerosos fundamentos, de natureza estritamente jurídica, para se opor à promulgação desta inaceitável lei.

Para além da questão política, constitucional e legal, o PR não pode deixar de ser sensível à questão ética e moral, que interpela o fiel Marcelo Rebelo de Sousa. Mesmo que estivesse obrigado a promulgar por um imperativo constitucional, legal, ou político, o que, como se disse já, pelo menos para alguns constitucionalistas de reconhecido mérito, não acontece, um cristão coerente não pode propor, nem aprovar, nem muito menos promulgar um diploma que viola directamente o 5º Mandamento da Lei de Deus: “Não matarás” (Ex 20, 13; Mt 5, 21). É pena que ainda ninguém, com mais autoridade, o tenha dito publicamente, com a frontalidade e coragem profética de João Baptista, que, sem vergonhosas tibiezas, nem cobardes cedências às conveniências políticas, censurou, em público, o imoral Herodes.

Qualquer que seja a atitude a tomar pelo Presidente da República, a sua decisão marcará, para sempre, a sua consciência e o seu mandato presidencial. Pode ser esta a ocasião para que passe à História como um Chefe de Estado digno da sua condição cristã e do país que o elegeu e reelegeu. Ou então, fazendo sua a lei que despenaliza e legaliza a morte a pedido, promulgando-a, assuma essa culpa moral e fique para sempre reduzido à insignificante dimensão de um mero PPP, ou seja, Pôncio Pilatos Presidente.