A Economist noticia: “O Primeiro Ministro de Portugal demite-se sob um escândalo de corrupção”. O Financial Times intitula: “O Primeiro-Ministro de Portugal demite-se quando a investigação de corrupção alcança o seu círculo mais próximo”. Portugal foi notícia em todos os importantes jornais internacionais, pelas más razões. A reputação de um país demora bastante a construir – Portugal era uma das referências europeias – mas destrói-se muito rapidamente. O sucedido a 7 de Novembro tem implicações no nosso desenvolvimento económico pois, obviamente, afetará negativamente potenciais investidores estrangeiros em Portugal. Sobretudo, lança dúvidas sobre corrupção e a lisura de procedimentos do poder executivo e administrativo e afeta a nossa auto-estima enquanto país. Este fortíssimo abanão no regime democrático português exige reflexões e mudanças institucionais para que não sejamos confrontados com semelhantes situações no futuro. Ainda é cedo para saber quais são, pois depende do que resultar do processo, mas há algumas que já podemos e devemos debater.
Poderiam as coisas ter sido diferentes? Certamente que sim. Quisesse António Costa segurar a maioria absoluta do PS, deveria, antes de apresentar a sua demissão (e não depois), tentar assegurar que o Presidente nomearia alguém para o substituir, um pouco à semelhança do que Durão fez com Sampaio, escolhendo Santana Lopes. Esta correta interpretação sampaísta da democracia parlamentar que nesse caso apenas não funcionou pois a personagem escolhida foi Santana Lopes. Caso Marcelo não aceitasse, restaria a Costa, convicto da sua inocência, manter-se ao leme do país, esperando uma decisão célere e favorável do Supremo Tribunal de Justiça. A sugestão de Mário Centeno, já após demissão, parece-me um fait divers para dar ideia de que o PS tinha uma solução de continuidade e que se esta não se concretizou tal foi da responsabilidade do Presidente e não do PS. Na realidade, esta solução não existia pois o nome do governador do Banco de Portugal nunca seria aceite pela ala pedronunista do PS. Mas isto são águas passadas.
Tendo António Costa apresentado a sua demissão afirmando que não se recandidataria, basicamente deu o sinal que a maioria absoluta tinha acabado. Neste contexto, o Presidente da República tomou a menos má das decisões: primeiro , dar tempo à AR para aprovar o OE2024 pela AR, depois dissolver a Assembleia da República, manter o governo de gestão e marcar eleições para 10 de Março. A maioria absoluta parlamentar que durou quase onze meses dá legitimidade democrática para aprovar o orçamento, que aliás já tinha sido aprovado, na generalidade. Depois, mesmo na eventualidade de haver uma alternância democrática após as eleições, um orçamento do PSD seria obviamente diferente deste, mas sem alterações substanciais. Neste sentido é melhor que a 1 de Janeiro entre já em vigor um orçamento que é atual e baseado nas mais recentes projeções macroeconómicas. Finalmente, marcar as eleições para Março parece da mais elementar civilidade democrática pois é o que permite ao PS mudar de liderança e preparar-se minimamente para eleições. Claro que há inconvenientes neste atraso. Porém, todos aqueles que ardentemente desejavam eleições mais cedo, como André Ventura ou Rui Rocha (que não mostra estar à altura do seu antecessor), são populistas e antidemocráticos.
O forte abanão do regime é inevitável pois qualquer um dos casos limites é grave. Ou o Ministério Público (MP) tem provas sólidas contra um número significativo dos visados no inquérito e então temos um sério problema de funcionamento do poder executivo em Portugal, que tem de ser solucionado com reformas institucionais e de cultura e ética política. Ou o MP não tem essas provas para a grande maioria dos visados e se limita a escutas de favorecimentos do empreendimento X ou Y, ou de aceleração de processos, sem contrapartidas patrimoniais diretas ou indiretas relevantes dos agora arguidos (que não se podem resumir a almoços e jantares). Note-se que é condição necessária para existir o crime de tráfico de influências à luz do código penal que existam e se provem esses acréscimos patrimoniais. Neste caso de ausência de provas sólidas estaremos num muito grave caso de judicialização da política que nos obrigará a repensar a eficácia e a autonomia do Ministério Público. Teremos de aguardar para saber. Porém, convém revisitar, brevemente, o que foi e não foi feito em termos legislativos nestas matérias e iniciar um debate.
Alegadamente, segundo o Ministério Público, alguém cometeu um crime associado a atividade de lóbi, que por si não é atividade ilegal. Deve a atividade de lóbi em Portugal ser regulada? Na XIII legislatura (2015-2019) a AR aprovou já em 2019 uma Lei do lóbi, que teve o apoio de PS, PAN e CDS e acabou sendo vetada por Marcelo. Na XIV legislatura (2019-22) estes três partidos voltaram a apresentar propostas que foram aprovadas inicialmente na generalidade, mas depois a avocação a plenário para votação, pedida pelo PAN, do texto de substituição elaborado na especialidade teve o voto contra dos socialistas, PSD, BE, PCP PEV e IL (com a exceção de Pedro Delgado Alves e poucos deputados do PSD) e foi rejeitado. Na atual legislatura houve projetos do PAN e do Chega sobre a matéria não agendados. Será que a regulação do lóbi traria mais benefícios ou custos?
Alegadamente terá havido acréscimos patrimoniais injustificados e associados a atos ilícitos, sem os quais não há prática de crime. Em termos legislativos avançou-se nesta matéria. Recentemente aprovou-se (PS, PAN, BE, PEV, IL) uma lei que criminaliza o enriquecimento injustificado compatível com a Constituição. Algo em que se avançou logo na XIII legislatura no tempo da geringonça (PS-PCP-BE-PEV) foi com um pacote de leis da transparência. Passou a estar prevista não apenas uma entidade da transparência, como um registo de interesses, rendimentos e património a um extenso grupo de titulares de cargos políticos e altos cargos públicos. Acontece, que estamos em final de 2023 e esta entidade ainda dá os primeiros passos nos testes à plataforma eletrónica para submissão das declarações e na formação de trabalhadores e dirigentes. Não consegue o Tribunal Constitucional acelerar o funcionamento operacional desta entidade?
Alegadamente, um alto dirigente da administração publica terá, sob pressão política superior, alterado uma decisão administrativa desfavorável ao interesse público e em beneficio pessoal ou de terceiros (só assim sendo um crime). Na XIII legislatura tive ocasião, como deputado não inscrito, de apresentar um projeto de lei (não agendado) que distinguia o processo de seleção dos dirigentes de nomeação política dos de perfil técnico. Não tenho dúvidas que se uma lei dessa natureza for aprovada, qualquer dirigente que seja nomeado na base sobretudo do seu perfil técnico, e não da sua lealdade política, resistirá mais a pressões políticas e eventualmente demitir-se-á se elas forem muito elevadas. Ou não será assim?
E agora? Aquilo que nos espera agora são umas eleições em que só há dois cenários plausíveis: ou uma maioria dos partidos de direita em que obviamente o PSD ficará dependente do voto ou abstenção do Chega para ser governo, ou uma maioria de esquerda numa espécie de geringonça 2.0 em particular se Pedro Nuno Santos for o líder eleito do PS. Está portanto na altura dos partidos que afirmam (todos) estarem preparados, mostrarem o que farão de diferente em relação ao PS, em fase de apreciação na especialidade do Orçamento de Estado 2024. Não é preciso apresentarem muitas propostas. Só as mais relevantes. Com uma próxima legislatura que não durará provavelmente mais de dois anos, seria bom que se comprometessem com medidas para um ano. Aquilo que temo é que dado estarmos já em campanha eleitoral, o PS aceite propostas despesistas a pensar nas eleições e no período pós eleições. Para além do imediato debate do OE há outros importantes a fazer sobre a transparência das decisões políticas, a formação e seleção do pessoal político, e dos dirigentes da administração pública. Sobre o Ministério Público chegará o seu tempo de o avaliarmos, pois agora é o tempo da justiça. Esperemos que este tempo não se eternize.
PS Como deputado não inscrito na XIII legislatura tive ocasião de votar contra a legalização do lóbi, pois não estou muito convencido que os benefícios superem os custos. Mas acho que se deve revisitar o tema.