Uma amiga minha disse-me uma frase que foi direita ao topo das minhas citações: “Nunca explico por má-fé aquilo que posso explicar por incompetência.” Ainda estamos no início, mas após a decisão do juiz de instrução sobre as medidas de coação a aplicar aos arguidos e sobretudo após ler mais de 100 páginas do processo Influencer, estou convencido que o que o Ministério Público (MP) acaba de fazer foi o tal golpe de estado constitucional de que falou Vital Moreira. Ajudou a derrubar um governo de maioria absoluta sem, tudo o indica, a posse de factos sólidos que indiciem crimes relevantes quer da maioria dos arguidos quer do primeiro ministro.

Na vertigem mediática em que vivemos outros assuntos preenchem a agenda (o caso das gémeas, o próximo líder do PS, as sondagens para as eleições), mas desta maior grave crise institucional da nossa história contemporânea temos de tirar ilações a dois níveis: o funcionamento do Ministério Público e a forma como se processa o investimento estrangeiro em Portugal, nomeadamente o papel do poder político e administrativo. Ocupo-me hoje só do primeiro.

Perguntar-se-á, o que deveria o MP fazer face à existência de indícios de crime? Não investigar? Claro que devia investigar, mas tendo ciente que esta não é uma investigação como as outras, sobretudo no que diz respeito ao primeiro-ministro (PM). A prova disso é que o PM é o único político (a par dos Presidentes da República e da Assembleia da República) em que o foro competente para ser julgado, por crimes praticados no exercício de funções, é o Supremo Tribunal de Justiça. Teria todo o sentido lançar esta operação de buscas (7 de Novembro) quando as provas existentes relativamente aos arguidos fossem já minimamente sólidas ou seja factos criminalmente relevantes. O Ministério Público esclareceu a 10 de Novembro que o inquérito ao primeiro-ministro foi instaurado a 17 de Outubro. Qual a necessidade de misturar tudo (arguidos e PM) no célebre e mesmo comunicado de 7 de Novembro? O MP justifica-se com a conexão entre os factos dos dois inquéritos e a necessária articulação na investigação de ambos. Mas o que está em causa aqui não é a investigação, é a estratégia de comunicação (ou melhor, ausência dela) do Ministério Publico. Independentemente de tudo o resto (provas, investigação), a forma como se faz a comunicação tem impactos muito distintos, nacional e internacionalmente. Que alternativas tinha o MP com danos reputacionais muito menores para o PM e que eventualmente não teriam levado à demissão do PM? A melhor solução seria retirar a alusão ao PM. Afinal já estava a correr inquérito desde 17 de Outubro. Saber-se-ia mais tarde, mas ter-se-ia evitado os títulos da imprensa internacional de Portugal como país de corruptos. Em alternativa, caso o MP achasse indispensável divulgar logo o inquérito ao PM, fazer dois comunicados um sobre os restantes arguidos e outro mais claro e informativo exclusivamente sobre o PM, com mais informação, enfatizando que não foram feitas buscas na área residencial ou de trabalho do PM. Ao colocar tudo no mesmo comunicado, o MP faz aquilo que o código do processo penal não faz, misturar aquilo que não deve ser misturado.

Sabemos qual foi a opinião do magistrado do tribunal central de instrução criminal. Só validou 180 dos 370 artigos do MP e deixou cair o crime de corrupção. Claro que pode haver recurso e opiniões divergentes na relação.

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Vejamos. Corrupção (passiva) é definida no código penal como solicitar ou aceitar para si ou para terceiro, vantagem patrimonial ou não patrimonial em contrapartida de qualquer ato ou omissão. Tráfico de influência é definido de forma semelhante, mas trata-se aqui dessa vantagem resultar de abusar da sua influência real ou suposta. Em qualquer dos casos a prova de qualquer destes crimes deve ser sustentada por uma vantagem, patrimonial ou não, não basta mostrar que essa influência existiu e que foi bem sucedida.

A leitura de mais de 100 páginas do processo referente ao Data Center, mostra duas coisas. Houve inequivocamente pressões várias, nomeadamente de titulares de cargos políticos, para acelerar e viabilizar o projeto da Star Campus em Sines. Para a esmagadora maioria dos arguidos não encontro, porém, no processo algo que possa considerar-se vantagem patrimonial, condição necessária para se ter um crime de corrupção ou mesmo tráfico de influências.

Vejamos alguns exemplos a partir de factos (não a sua interpretação) do que nos revela a investigação do MP em relação a alguns dos arguidos no caso StartCampus. A Tabela em baixo lista os factos essenciais das refeições pagas pela StartCampus.

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do Ministério Público (nd – dados não disponiveis; na – não aplicável)

Dado que nos dois últimos restaurantes o MP não sabe quantos foram os convivas só se pode retirar inequivocamente conclusão factual em relação ao recebimento de vantagens dos participantes nas três primeiras refeições. Por exemplo, é um facto que João Galamba ao estar no Bairro Alto Hotel e no JNCQUOI Asia (também esteve no Trinca Espinhas, mas aqui não é possível apurar montante) auferiu um benefício total (293,79€) da mesma instituição (StartCampus) que ultrapassa o valor máximo (150€) estabelecido no código de conduta do governo. Logo, violou este código, podendo prefigurar crime de recebimento indevido de vantagem. É criticável, mas convém termos o sentido das proporções em relação à gravidade deste eventual crime. Já quanto a Duarte Cordeiro, que não é arguido, em que há provas que esteve na refeição do Madeirense (08 de Junho de 2022), nada se sabe que importância lhe pode ser atribuída (não se sabe o número de convivas). É referida outra refeição a 10 de janeiro de 2023, “bem como noutras datas não concretamente apuradas” dizem os procuradores do MP. Aqui não há datas, nem valores, nem número de participantes. Em resumo, quanto a Duarte Cordeiro, nem há provas que tenha violado o código de conduta do governo.

O caso de Nuno Mascarenhas (NM) é também ilustrativo da ausência de provas relevantes. A Câmara Municipal de Sines teria de licenciar o Data Center bem como o parque solar em Monte Queimado. Ora por um lado, NM não tinha as competências de ordenamento do território, delegadas na vereadora Filipa Faria. Exerceu pressão? Onde estão as provas? Por outro, os factos subsumíveis a crime de corrupção, de acordo com o MP, seriam o acordo que NM fez com a StartCampus para em troco do empenho para dar maior celeridade camarária aos processos administrativos em curso receber o apoio da empresa para o Festival de Músicas do Mundo de Sines, de 5000€, e um apoio ao jovem clube de futebol Vasco da Gama de Sines com um montante incerto, mas alega o MP, certamente superior a 100€. Note-se que a transferência dos 5000€ para a Câmara de Sines foi feita e a StartCampus passou a constar como patrocinadora. São isto os factos que indiciam corrupção? Isto seria cómico se não fosse trágico, que se prenda preventivamente e se manche a reputação de um presidente de câmara, com este tipo de “factos”.

Finalmente, Diogo Lacerda Machado (DLM). É muito claro que Lacerda Machado funcionou neste processo como um lobista a favor primeiro da Pioneer Point Partners (PPP) e depois da StartCampus, fazendo a representação de interesses destas empresas junto de quem conhecia, desde logo o PM (seu melhor amigo à data), ministros, chefe de gabinete, Vitor Escária, etc. Acontece que a atividade de lóbi em Portugal (no sentido de advocacy) não é ilegal, apesar de também não ser legal nem estar regulamentada. O que há mais para aí é representação de interesses empresariais geralmente através de advogados (por exemplo, e aqui de forma mais transparente, na Assembleia da República nas audiências) e isso não constitui, que eu saiba, crime. Os procuradores estranham que, na sua declaração de rendimentos à Autoridade Tributária, DLM tenha colocado o código de advogado quando não fez trabalho de advocacia. É verdade que não o fez. Acontece que não há código para essa atividade junto das finanças. Ao contrário dos casos analisadas anteriormente, aqui distingo duas situações. A remuneração mensal e regular que recebeu, primeiro da PPP e depois da StartCampus, pela sua atividade de representação de interesses, não me parece poder ser classificada por vantagem patrimonial. Já não penso o mesmo quanto ao acordo assinado entre DLM e a empresa de uma promessa de participação futura de 0,5% do capital accionista da Pioneer e da DK e que reza assim “This equity grant is a recognition of the positive impact you will make toward the future success of Start”. Se receber a promessa futura de ações na empresa não é uma vantagem patrimonial, não sei bem o que é.

Aquilo que concluo deste processo no que toca à atuação dos procuradores do MP é essencialmente o seguinte. Não subscrevo a leitura do “plano criminoso”, assim é designado pelo MP, envolvendo ministros, altos dirigentes da administração pública, um autarca, o chefe de gabinete e quiçá o próprio primeiro-ministro, um lobista amigo do PM e uma empresa. A minha leitura é muito mais simples. Há uma empresa que quer fazer um grande investimento no país, alegadamente o maior depois da Autoeuropa (já agora era bom explicarem o impacto económico, no desenvolvimento regional, no emprego e na receita fiscal do estado). Há um primeiro-ministro que quer deixar marca e dar um sinal que consegue atrair grande investimento estrangeiro. Há um ministro, admirador de Mariana Mazzucato, a economista que considera que o estado deve ser empreendedor, e que acha que tudo deve fazer para acelerar o investimento naquilo que acredita ser estratégico para o país (também era bom que clarificasse porque acredita). Há um lobista contratado para fazer a representação de interesses junto do poder político. Há um chefe de gabinete que trata de fazer os contactos para que esse investimento que o primeiro-ministro acha essencial vá para a frente.

No meio desta história, terão sido cometidos alguns crimes? Provavelmente sim, mas por uma minoria dos arguidos e, sobretudo, não da gravidade sustentada pelo Ministério Público que leve um primeiro-ministro a apresentar a sua demissão.

O Ministério Público tem uma PGR e um vice-PGR, 154 Procuradores e Procuradoras-gerais adjuntas e 1494 procuradores. Obviamente que a PGR não pode acompanhar todos nem a maioria dos inquéritos do MP. Porém, Lucília Gago tem forçosamente de conhecer e lidar bem comunicacionalmente com um inquérito que levanta suspeição sobre um primeiro-ministro. Sob pena de contribuir, como contribuiu, para um golpe de estado constitucional, mesmo sem dolo.

PS O melhor estudo realizado em Portugal, sobre o Ministério Público português, em perspetiva europeia comparada, foi realizado para a Fundação Francisco Manuel dos Santos. Largamente ignorado, apesar de datado (2014) continua de grande atualidade. Poderia servir de base a um debate sério sobre a reforma do Ministério Público. O que sabemos é que nem PS nem PSD, com responsabilidades na governação, quiseram ou conseguiram fazer uma reforma da justiça. O PS teve ainda a ironia de não reconduzir Joana Marques Vidal, que se ainda fosse PGR as coisas ter-se-iam passado de modo diferente. As opões políticas têm consequências.