Com o chumbo do Orçamento de Estado não foi apenas uma crise política que se instalou foi antes um pântano. As eleições têm o mérito de que poderão eventualmente resolvê-lo. Poderemos, porém, caminhar para a ingovernabilidade e este é o grande risco da decisão do Presidente em dissolver o parlamento. Já tínhamos antecipado aqui no Observador a possibilidade desta crise agora. Os sinais de desgaste da solução governativa à esquerda, eram evidentes. A não aprovação pelo governo do decreto-lei de execução orçamental não foi falta de tempo. A não aprovação pela AR da proposta de lei das grandes opções, enquadradora do Orçamento, e que deveria ter ocorrido em Maio, também não. Mostrou a falta de capacidade de, em devido tempo, se estabelecerem compromissos, quer por falta de vontade política quer de objeto. Marcelo também não ajudou ao promulgar decretos que aumentam a despesa e que obviamente violam a norma travão da Constituição.

A geringonça chegou ao seu fim anunciado e estava agora de facto esgotada. Porém, cumpriu o seu papel a que se propôs na anterior legislatura. Mostrou que era possível implementar uma política económica, orçamental e social diferente da de Passos e Portas e fazê-lo com contas certas. Uma política que não via na austeridade, nos cortes salariais, nos cortes de pensões, nas privatizações e na desconsideração dos trabalhadores do Estado como a solução para os problemas económicos e sociais do país. Antes uma recuperação económica assente quer na procura interna quer externa, numas políticas públicas que promovem a inclusão social, e o esforço, nem sempre bem sucedido,  de melhorar e requalificar o Estado.

O Orçamento não passou porque o mínimo denominador comum que une PS, BE e PCP, é hoje muito reduzido. Materializa-se nas propostas que ainda poderão ser aprovadas na AR até à sua dissolução. A prova disso é que a tentativa de acordo orçamental se estendeu às áreas laborais que nada têm a ver com o orçamento. Quanto mais se vai para outras áreas (seja a questão laboral, a Europa com as suas regras, etc.) maior a divergência entre estes partidos. Não me surpreendeu que a geringonça tenha soçobrado, mas antes a forma indigna e atabalhoada como acabou no meio de um regateio de feira de mercearia em torno de um orçamento até ao último minuto.

O Orçamento chumbou pois BE e PCP consideraram que o custo político da queda do governo hoje é menor do que daqui a um ano em vésperas de legislativas e já com grande parte do dinheiro da bazuca europeia despendido. Uma coisa parece certa, o BE será fortemente penalizado nas próximas eleições quer pela parcial responsabilidade nesta crise quer pelo argumento do voto útil. Um eleitor da área do bloco questionar-se-á: para quê votar bloco se, tendo em conta que Costa se recandidata, não há grandes condições para continuar a conversa com Catarina Martins? O PCP também será castigado, mas em menor grau dado ter uma base social de apoio menos volátil.

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Analisei a crescente complexidade dos Orçamentos de Estado em governos minoritários no meu último livro (1) em que atribuo o declínio da nossa democracia a dois factores: um aumento da fragmentação parlamentar e a incapacidade de estabelecer acordos sólidos e escritos (!), com ou sem coligação. Aquilo que todos os atores políticos deveriam fazer agora é dizer que só em função dos resultados eleitorais decidirão que coligações poderão realizar para assegurar a estabilidade política. Quando muito recusar certas coligações, como é o exemplo das com o Chega, para evitar que haja aí voto útil. Criar condições para o diálogo político pós-eleitoral é agora a prioridade.

António Costa não disse ainda ao que vem na nova legislatura. Se por razões de interesse nacional – por exemplo a necessidade de executar os fundos europeus e evitar nova crise política – precisar de um qualquer entendimento com o PSD continuará a rejeitá-lo, como fez nesta legislatura? O que Costa pretende caso ganhe as eleições é ter uma maioria absoluta PS. Caso não a obtenha poderá tentar reeditar a geringonça. Porém, vão o BE ou PCP enfraquecidos eleitoralmente apoiar um governo PS? Com que objeto? Não vão certamente. Resta ao PS ter suficientes mandatos que somados aos deputados do PAN e, quiçá, Iniciativa Liberal, façam essa maioria.

Rui Rio mostrou-se mais flexível quanto a soluções governativas, já Paulo Rangel excluiu qualquer entendimento com PS, pensando no voto útil no PSD, e com isso subiu um muro. O PSD dificilmente vencerá as eleições, mas dependendo do grau de penalização que for dado ao BE e ao PCP, da eventual transferência de votos do PS para PSD, e do nível de abstenção, pode haver uma maioria de mandatos dos partidos de direita no hemiciclo, que ficará dependente dos deputados do Chega e dos autonómicos deputados das regiões autónomas do PSD. Com este cenário teremos a ingovernabilidade perfeita.

Governabilidade com maiorias absolutas de PS ou de PSD para além de altamente improváveis, são mesmo indesejadas. Os velhos e maiores partidos da nossa democracia não têm ideias claras sobre o que querem e como querem operar algumas das reformas essenciais do país. Não se renovam, não se regeneram, não se abrem à sociedade civil e limitam-se a satisfazer clientelas internas sem qualquer pensamento estratégico. Os pequenos partidos ainda não alcançaram a maturidade. As eleições darão, ou retirarão, legitimidade política aos líderes partidários que se apresentarem ao eleitorado. O importante desta crise é que se tirem lições. Governos minoritários não funcionam sem, no mínimo, acordos escritos de incidência parlamentar.  No pântano político a que chegámos o espectro da ingovernabilidade política aí está, com a agravante que as ruas se tornarão mais ruidosas.

PS (1) A democracia em Portugal, como evitar o seu declínio, Edições Almedina. Retomarei este tópico com o artigo: O Pântano Político (II): como sair dele?