Há dois dias fez exatamente 30 anos do massacre de Tiananmen. Se pudemos recordá-lo cá pelo Ocidente, o mesmo não se pode dizer da China. Chegam-nos relatos da imprensa que dão conta que o episódio tem sido branqueado, como convém aos governos autoritários, que preferem que a população acredite que vive no melhor dos mundos. Mesmo que Pequim esteja paulatinamente a implementar um sistema de créditos sociais com pontos, em que cada pessoa é avaliada no seu comportamento, não só público como privado, pelos mais diversos meios tecnológicos. Cada cidadão terá a devida recompensa ou represália consoante a avaliação do regime.

Orwelliano? Parece-me que sim. No entanto, o comportamento interno e externo chinês não parece incomodar toda a gente. Caso contrário, para que estaria o governo português a emitir títulos da dívida em yuans? À primeira vista a resposta parece fácil: é uma questão meramente económica – a China tornou-se um investidor internacional incontornável – e o que se passa no interior dos estados não diz respeito a ninguém. O problema é que não é bem assim. A própria China transformou a economia numa poderosa ferramenta política, que usa para estabelecer legitimidade doméstica (quem resiste a uma vida económica muito mais desafogada?) e domínio internacional.

Vamos à questão externa que é o que verdadeiramente nos interessa aqui: desde os anos 1990, de uma forma discreta mas continuada, na sua vizinhança, em África e, mais tarde, na América do Sul, Pequim tem vindo a introduzir a sua influência num conjunto assinalável de países, precisamente através do investimento estrangeiro. Começou pela construção de infraestruturas e concessão de avultados empréstimos (sem condições de boa governança) a estados com muitas dificuldades em construir ou aceder a crédito; passou à compra massiva de matérias-primas, e finalmente, dedicou-se aos investimentos em empresas fundamentais para o funcionamento de qualquer país – energia, distribuição, telecomunicações, transportes – e fez avultados investimentos na banca e seguros. Por outras palavras, criou condições para que esses estados tenham caído em profunda dependência económica. Quando as coisas não correm como a China quer, fecha-se uma torneira. Um exemplo muito simples: quando, em 2017, a Coreia do Sul decidiu usar o sistema americano antimíssil para se proteger da Coreia do Norte, Pequim proibiu a venda de viagens para o estado vizinho (cujo turismo é essencialmente pensado para os chineses), bem como a compra de automóveis fabricados em Seul. Este tipo de “boicotes diplomáticos” têm-se repetido em diversos países.

Com a crise económico-financeira de 2008, a China começou a fazer o mesmo nos estados fragilizados da Europa do Sul. Como se sabe, Portugal não foi exceção.

Se se podia alegar, ainda que demasiado ingenuamente para o meu gosto, que a China não tinha intenções políticas pronunciadas aquando da compra a EDP e da REN, uma vez que Xi Jinping parecia ainda professar o credo do crescimento “pacífico” e “harmonioso”, hoje já não é assim. O secretário-geral do Partido Comunista Chinês já não esconde que a sua visão passa por construir um sistema internacional que tem a China ao centro. Por outras palavras, quer reestabelecer o Império do Meio. Aproveitando a fraqueza relativa dos Estados Unidos, Pequim quer recriar as Rotas da Seda terrestre a marítima. A ser concretizado, ainda que parcialmente, a China irá dominar as mais importantes vias comerciais internacionais, tornando-se o mais influente estado do mundo. Sem precisar de fazer a guerra, a China prepara-se para implementar um projeto imperial sem precedentes.

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Se Portugal já parecia dar indícios de estar na disposição de fazer parte dos parceiros europeus de Pequim, desde a visita oficial do líder chinês a Lisboa, em dezembro de 2018, esses sinais não param de crescer. Na ocasião, o governo assinou mais de uma dezena de protocolos em diferentes vertentes (muitos deles desconhecidos da opinião pública), e deixou em aberto a possibilidade de negociar posições no Porto de Sines – uma zona estratégica fundamental para a Belt and Road Iniciative.

Mais, anunciou há alguns dias que ia começar a emitir os Panda Bonds (os tais títulos da dívida soberana portuguesa em moeda chinesa) que entretanto já estão no mercado. Não se trata de uma questão que por si só vá mudar muita coisa. A China já comprava dívida em euros. Mas é um sinal político muito forte de que Portugal poderá estar a inverter a sua política externa num sentido que terá custos altíssimos no médio prazo. Além disso, importa salientar que nenhuma destas questões, estratégicas para o futuro do país, estão a ser debatidas publicamente. Pelo contrário; perece que melhor é que não se comente muito, não vá alguém apontar o que já se começa a tornar evidente.

Como escrevi noutra ocasião, há razões de sobra para Lisboa fazer negócios com empresas chinesas (ainda sabendo que todas elas são controladas pela estado). Mas uma coisa são negócios, outra completamente diferente é entregar o país aos planos imperiais chineses. A história recente dos boicotes diplomáticos – e o comportamento interno chinês – alertam-nos ruidosamente para as potenciais consequências negativas. Lisboa tem alianças permanentes que lhe permitem declinar, ainda que muito amavelmente, o convite chinês. Resta saber se a tentação do dinheiro fácil, num momento em que a economia teima em não arrancar da forma que gostaríamos, não leva a melhor. Esperemos que quem de direito seja firme na posição de que Portugal não está à venda. Especialmente a um estado que controla indiscriminadamente em nome da sua própria grandeza.