Uma pergunta incómoda: no dia em que a China constituir uma ameaça efectiva e inequívoca à segurança dos cidadãos europeus, qual será a posição de Portugal, cada vez mais na dependência de Pequim? A resposta não é nada óbvia para um país que se atirou voluntariamente para o bolso dos chineses em diversos sectores estratégicos. Mas importa insistir na pergunta (já feita pelo Bruno Faria Lopes) em busca de uma resposta cabal. Se já antes o risco era evidente e o silêncio ruidoso, a guerra na Ucrânia lembrou-nos das consequências para quem se coloca na dependência de Estados autocráticos — veja-se, por exemplo, a dependência energética alemã face à Rússia. As escolhas estratégicas importam e por isso devem ser tema no debate público e político.

A Rússia foi, durante anos, avaliada com benevolência. Houve um tempo em que os líderes europeus faziam fila para construir uma relação privilegiada com Putin. Agora, desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, os aliados do Kremlin em países ocidentais têm sido postos em xeque. Em Portugal, a pressão recaiu sobre o PCP, que se ergue (como sempre) pela defesa dos interesses russos. Em França, a candidata presidencial Marine Le Pen viu a sua campanha contaminada pelo financiamento do regime russo de que o seu partido beneficia há largos anos. E, por toda a Europa, a situação repetiu-se: nos extremos da esquerda e da direita, Putin havia comprado aliados, unidos pelo objectivo comum de enfraquecer as democracias e as instituições europeias. A invasão da Ucrânia pela Rússia tornou insustentável essa relação — e esses aliados de Putin têm sido ostracizados.

Agora, imagine o seguinte: e se esses aliados, em vez de estarem nas franjas anti-sistema dos Estados europeus, estivessem mesmo no centro do sistema político (nos partidos de governo, nas maiores empresas nacionais, nos sectores estruturais das economias europeias) — quão limitada estaria a resposta dos Estados europeus contra o inimigo? A questão não tem de ser tão abstracta: para colorir a imaginação, bastará pensar na ambição da China e na dependência que países como Portugal têm actualmente do financiamento de Pequim.

A China é o 5º país que mais investe em Portugal — os EUA estão em 8º lugar. À frente da China, só Espanha, França, Reino Unido e empresas portuguesas sediadas no estrangeiro. Não é um acaso, mas sim tratamento privilegiado: Portugal está no topo dos países europeus onde a China mais investe. E, ao contrário de Espanha ou França, o peso do investimento chinês concentra-se em sectores estratégicos, como os da electricidade, água e gás, em virtude da posição da China Three Gorges na EDP e da Fosun na REN. Na mesma linha, a China viu no Porto de Sines um ponto-chave da sua “Rota Marítima da Seda”, que visa ligar os portos chineses ao resto do mundo e alargar o alcance das exportações de produtos chineses — e Portugal, desde o início, demonstrou-se disponível para entregar Sines aos chineses (veja-se, por exemplo, como Marcelo e Costa já abordaram a questão). Nos Açores, fala-se da possibilidade de aquisição chinesa do porto da Vitória, com vista a colocar a China no centro das redes mundiais de energia. As visitas de altos responsáveis chineses aos Açores ilustram esse interesse.

Os exemplos multiplicam-se noutros sectores, como o sistema financeiro ou a saúde. E, ao mesmo ritmo alucinante a que cresce a influência do capital chinês em Portugal, aumentam as preocupações internacionais. Em 2019, Portugal foi descrito na imprensa internacional como um cavalo de Tróia da China, instalado no coração da UE. Dando conteúdo a essas inquietações internacionais, o primeiro-ministro António Costa interveio frequentemente em defesa do investimento chinês, nomeadamente em entrevista ao Financial Times, justificando o valor estratégico das parcerias com a China. No mês passado, António Costa insistiu e pediu o reforço da cooperação de Portugal com a China. Ora, nos EUA e na UE, a apreensão é cada vez mais evidente. Recorde-se que, em 2020, a pressão dos EUA manifestou-se de forma explícita: o embaixador norte-americano em Lisboa avisou que Portugal teria de escolher entre os EUA e a China. Consequentemente, em vários negócios em áreas estratégicas, os EUA ponderam entrar para assim travar a expansão da China.

Como quase sempre sucede, o dinheiro manda em quem olha apenas para o curto prazo. Mas, como a história nos relembrou na recente invasão da Ucrânia pela Rússia, o dinheiro das autocracias compra dependências que, mais tarde, saem caras. Por isso, talvez devêssemos discutir, fazer perguntas e exigir explicações às autoridades portuguesas sobre a relação com a China — antes que chegue o dia em que lamentaremos o silêncio.

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