Desde que tenho consciência política que sei que sou liberal, no sentido clássico. As minhas referências são díspares, estando longe de assentar num todo coerente. Ao longo do tempo fui desenvolvendo simpatias austríacas, radianas, straussianas e anarquistas-libertárias, e lendo com interesse muitos dos que, à época da vida destes autores, funcionavam como seu contraponto ou mero desvio. O que sempre me fascinou no pensamento liberal é poder olhá-lo, não como uma prescrição ou imposição de adesão, mas como uma tradição multisecular, construída em diversos contextos culturais e históricos distintos, uma tradição que me ajuda a compreender o mundo e a formar o meu próprio pensamento. Um pensamento que, ainda assim, aprendeu a respeitar, pela sua intemporalidade, valores essenciais, fundacionais das várias correntes liberais, à cabeça, a liberdade ao serviço da pessoa e da sua felicidade, o culto da excelência e da virtude, a propriedade, e a tolerância. Nos últimos 20 anos, com o advento da internet, nos primitivos blogues e posteriormente com a afirmação das redes sociais, um interesse que era inicialmente cultivado, isoladamente e em introspeção, passou a ser um interesse social, construído e partilhado com um forte sentido comunitário.
Durante esta viagem fui empiricamente percebendo que as democracias liberais mais saudáveis são as que conseguem dirimir as suas desejáveis diferenças no quadro do pluralismo e da tolerância, sendo a matriz liberal ou socialista muito mais um padrão ou uma tendência, e muito menos uma identidade marcada. Sempre me pareceu que o debate de ideias deve ser liderado na dita “sociedade civil”, considerando desinteressante que os partidos ditos de “poder” – ou seja, os que têm de resolver os problemas concretos das pessoas, do Estado e das empresas – fossem excessivamente dogmáticos e fechados (não obstante ser importante terem referências claras), pois tal significaria que não seriam representativos da sociedade, nas suas diversas aspirações e especificidades. Acresce que sempre me pareceu indesejável que uma força política, ou um conjunto limitado de forças políticas, para agregar 40% do eleitorado, encerrasse uma linha dogmática fechada, sob risco de totalitarismo, ou de pelo menos uma certa ditadura da maioria. “Partidos de poder” demasiado homogéneos são, a meu ver, um perigo para o pluralismo e para as democracias que genuinamente respeitam a liberdade (e talvez por isso haja tantas tensões quando as esquerdas e as direitas mais radicais ou partidos de vanguarda e as suas ideias, como o PAN ou o Bloco de Esquerda, conseguem assumir responsabilidades no sistema político). Strauss, nos ensaios compilados na obra What Is Political Philosophy?, aponta nesta linha, ao alertar para os riscos que se correm quando se procura enjaular uma filosofia política (como é o caso do liberalismo, mas também da democracia-cristã, do conservadorismo, ou de qualquer outra corrente do pensamento político relevante) nos limites da ação. Para Strauss, uma filosofia política mais não é do que um processo para a tomada de uma consciência genuína dos problemas, ou seja, dos problemas fundamentais e abrangentes. Ora, é impossível pensar nesses problemas sem que nos inclinemos para uma ou mais soluções típicas. No entanto, na busca da sabedoria, a evidência de todas as soluções é necessariamente menor que a evidência dos problemas. Portanto, para Strauss, uma base de pensamento tão ampla como o liberalismo deixa de ser filosofia no momento em que a certeza subjectiva de uma certa solução se torna mais forte do que a consciência do caráter problemático dessa mesma solução: ora, nesse momento, nasce o sectário. O perigo de sucumbir à atração de soluções é essencial para a filosofia, e é nessa validação com a realidade que se testa a atualidade e força das ideias. Mas, provavelmente influenciado pelas leituras de Strauss, sempre considerei fundamental que as discussões de temas próprios da filosofia política liberal permanecessem afastadas das capturas que possam reduzir o seu pensamento aos limites de uma seita, tornando-o sectário – no sentido que lhes é dado por Strauss, de redução das possibilidades. É por isso que, para mim e para todos os que genuinamente se sentem homines liberales, é muito mais interessante o processo do que as suas prescrições, e seguramente mais apelativo poder estar em diálogo com várias forças políticas, procurando divulgar os valores essenciais da filosofia liberal, do que barricá-lo nas fronteiras de um só partido, prescritivo, de “nicho” ou “vanguarda”. O mais importante tem sido perceber como uma mundividência liberal pode influenciar a procura das soluções para os problemas, por parte dos partidos que exercem o poder, e não tanto fazer do liberalismo, poder, ou uma doutrina ou ideologia orientada para a ação, prescritiva e encarcerada numa lógica partidária necessariamente sectária que lhe limite as possibilidades e ponha em causa o pluralismo. São estas as razões de fundo que me têm levado, desde que me lembro, a ser abertamente contra a existência de um partido liberal, e infelizmente algumas expressões recentes da realidade têm acentuado as minhas reservas.
A Iniciativa Liberal, desde a sua génese, algures entre 2016 e 2017, que me tem merecido inúmeras reservas. Desde logo, a ambição de “um grupo de cidadãos” de explorar “a viabilidade de um partido para juntar todos os liberais portugueses”, na sua aspiração hegemónica e de união, nos limites de um partido, representa à partida o contrário de tudo o que sempre acreditei, no seu risco de sectarização e tribalização. Põe em perigo a necessária tolerância e abertura que são essenciais para explorar diversas possibilidades, fechando a discussão numa simplificação do debate e em querelas que estão muito longe de interessar à maioria dos portugueses. A suprema ironia é que hoje, a existência de um partido liberal, que se vê representado no Parlamento por um único deputado, mas que tem sido capaz de gerir bem a sua importância mediática, afastou das ideias liberais partidos como o CDS e o PSD, e não conseguiu travar a afirmação de uma força política saudosista como o Chega: ora, numa altura onde seria fundamental que soluções liberais tivessem alguma presença nas alternativas de governo à frente de esquerda nascida da Geringonça, o que temos é as ideias liberais, misturadas com uma miscelânea progressista, limitadas a um partido que permanece sub-representado na sociedade portuguesa.
A existência da IL, em vez de abrir possibilidades, tem vindo a encerrá-las, limitando a afirmação e a influência das ideias liberais na ação política.
Com a agravante da tribalização ou sectarização, e o desvirtuamento de um leque de ideias que, não obstante assentarem numa lógica aberta, não se confundem com as que sempre foram tidas como inimigas da liberdade. Na verdade, muito do “pensamento” e do “ideário” emanado da IL é produzido e criado por pessoas que desconhecem os fundamentos e as correntes de pensamento que ao longo de séculos consolidaram o liberalismo, deslumbradas com a relevância irrelevante e a falsa sensação de validação intelectual que é dada pelos pares das redes sociais. Numa tentativa de “superação” do liberalismo clássico, é doloroso ver o partido que aspira a “juntar todos os liberais portugueses” a funcionar como projeção de “vanguardas” que mais não são do que uma reciclagem preguiçosa e sem qualquer densidade de correntes filosóficas caducas, assumindo críticas ao “neoliberalismo de Reagan e Thatcher”, e protagonizando, não a defesa de direitos fundamentais ou da igualdade de direitos, mas agendas de rutura e de destruição do tecido social inspiradas no marxismo e nos seus filhos diletos da esquerda chic dos anos 60.
Tenho a dizer que, a espaços, me vejo dividido entre a clarividência das ideias e a simpatia e amizade que me une a muitos dos que decidiram embarcar na ideia peregrina de formar um partido liberal. E não desvalorizo, por exemplo, a forma como as candidaturas do Ricardo Arroja e do Tiago Mayan, e o trabalho e dedicação do Carlos Guimarães Pinto, contribuíram para reabilitar muitas ideias sucessivamente ignoradas no debate público. O balanço é, a meu ver, muito negativo, e quando constato, na saída de uma pandemia, as soluções políticas disponíveis, mais certeza tenho que não estamos, seguramente, no bom caminho. O PSD e o CDS são hoje os menos liberais de sempre, e a própria IL, recorrentemente, provoca vergonha alheia a quem tem simpatia e carinho pelas ideias liberais. Pelo caminho, a IL, nas suas decisões, parece mais preocupado em garantir o seu pequeno nicho e sobrevivência, a todo o custo, numa lógica meramente partidária, como se está a ver em Lisboa, onde preferiu candidatar um candidato, seguramente estimável, mas sem qualquer relevância ou expressão, para marcar espaço, em vez de integrar uma candidatura mais plural, liderada por um candidato que, não sendo seguramente uma incarnação de Hayek e Foucault (pelo que se vai percebendo, a IL precisa de alguém que consiga fazer a fusão entre os dois), em caso de vitória poderá dar à capital uma governação, seguramente mais liberal do que aquela que há anos encontramos no consulado de Costa e Medina.
Ao longo dos últimos anos, vários amigos liberais, e outros que não conheço de lado nenhum, não deixam de me apontar o desconforto por eu não ter aderido em deriva coletiva ou osmose à sua mais recente paixão pela vanguarda partidária. Que fique claro que lhes desejo as maiores felicidades e sucessos, recordando aos mais esquecidos ou mais arregimentados, que as ideias não têm donos, e as sábias palavras de Strauss, que verbalizam melhor do que eu, aquilo que penso:
“O perigo de sucumbir à atração de soluções é essencial para o pensamento que, sem incorrer nesse perigo, degeneraria em brincar com os problemas. Mas o pensador não sucumbe necessariamente a esse perigo, como nos mostrou Sócrates, que nunca pertenceu a uma seita e nunca as fundou. E mesmo que os nossos amigos sejam compelidos a ser membros de uma seita ou a fundá-la, eles acabarão por não ser, necessariamente, membros de uma ou da mesma seita”.