A todas as Mães

A minha mãe tem noventa anos. Há 45 dias que nos vamos vendo, ocasionalmente, através de zoom ou whatsapp. Está confinada, com um dos meus irmãos e um neto, numa casa na Beira Baixa que o meu avô construiu, tinha ela um ano. O meu avô foi mandado para França, na I Guerra Mundial, como oficial, e seria mais tarde capitão inválido de Guerra. Construiu uma casa grande pois com um filho e três filhas achou que iria ter muitos netos, mas acabou tendo apenas cinco, rapazes, desta filha mais nova. Na então aldeia, a casa era conhecida por “o prédio”. No pequeno escritório da entrada havia revistas sobre a guerra. O meu avô contava-me histórias sobre os cálculos que fazia, nas trincheiras, sobre a inclinação desejável das espingardas para que os tiros atingissem os soldados alemães, também eles entrincheirados. Era uma nova aplicação para a matemática, aprendida no Técnico e na Faculdade de Ciências de Lisboa, e que levaria a minha mãe a seguir as pisadas dos pais e licenciar-se em matemática. Na faculdade, pertenceu à Associação de Estudantes, onde construiu amizades, que duraram para a vida. Casou, teve filhos, e seguiu a sua vocação, ser professora de matemática. Ensinou centenas de estudantes, primeiro na Escola Avé Maria, depois no Liceu Passos Manuel  e finalmente no Pedro Nunes em Lisboa. Hoje, está nessa casa, cada vez mais fraquinha e mais distante. Confinada.

Leio no dicionário: CON-FI-NAR. “Limitar, circunscrever, desterrar alguém para uma região distante.” Não é bem isso, mas está sem contactos sociais, sem ver e estar com os outros filhos, netos e bisnetos. Tem o grande privilégio, neste exílio interno, de estar numa casa agradável, com muito campo à volta, e acompanhada. Mas o tempo passa. Não sabemos quantos meses ainda estará connosco, mas não serão muitos. Posso visitar a minha mãe, neste dia da mãe? Devo visitá-la?

Há milhares de portugueses, muitos com mães confinadas em piores condições ou em lares, em situações muitíssimo mais complicadas, pois neles o Covid-19  já deu entrada e matou, que fazem as mesmas perguntas. Cada caso é diferente e terá a sua resposta. Mas há três tipos de abordagens: a dos órgãos de soberania, a da Constituição da República Portuguesa e a da família.

O país deixou ontem o estado de emergência e entrou hoje no estado de calamidade.  O Presidente da República e o primeiro-ministro, que têm tido uma sintonia de saudar, passam a mensagem que é uma mudança de degrau quanto às restrições gerais do país. Por isso António Costa apresentou o calendário de reabertura das atividades económicas e sociais, a ser reavaliado quinzenalmente. A sua prestação na RTP, esta semana, mostrou uma boa dose de bom senso que é aquilo que o país espera e necessita dos seus políticos. O decreto regulamentar aprovado pelo governo esta quinta-feira, e promulgado por Marcelo Rebelo de Sousa, proíbe as deslocações entre concelhos até hoje, dia 3, apesar de já se estar em estado de calamidade e não de emergência. A intenção é boa, minimizar os contactos sociais, mas tudo indica que será inconstitucional. Quando todos os constitucionalistas e juristas de esquerda e de direita (Vital Moreira, Bacelar de Vasconcelos, Paulo Otero, Rui Pereira), sem funções de soberania, concordam que não se pode limitar a mobilidade ao abrigo do estado de calamidade pública, é fácil concluir que este decreto estará ferido de inconstitucionalidade. As autoridades policiais, implementarão a lei, e impedirão deslocações inter-concelhias, “salvo por motivo de saúde ou urgência imperiosa”. Esta norma da lei produzirá os seus efeitos pois está em vigor.

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Quanto às famílias, cada uma interpretará, a seu modo, com sensatez, o estado de calamidade em que entrámos e se pode ou não celebrar presencialmente o dia da mãe, ponderando os benefícios e os riscos da convivialidade, bem como os da sua ausência.

Não vou visitar a minha mãe hoje, embora considere que poderia fazê-lo à luz da Constituição. Irei amanhã, com concordância da família e todas as precauções, dado ter deixado de produzir efeitos o decreto governamental. Parabéns Mãe!

PS. Parabéns a todas as mães pelo exemplo, amor e carinho que já deram às suas filhas e filhos e pelo que ainda irão dar.