No âmbito da recém-aprovada Estratégia Nacional de Combate à Pobreza 2021-2030, o governo propõe que a escolaridade obrigatória se inicie aos 3 anos de idade (no primeiro ano do pré-escolar), em vez de nos actuais 6 anos de idade (isto é, quando começa o ensino básico). A questão que muita gente colocou é simples: será adequado impor essa obrigatoriedade? A resposta para qual me inclino é que sim, mas também que essa nem é a questão principal. Vamos por pontos.
1. A escolaridade obrigatória em Portugal começa aos 6 anos de idade, que é o momento em que os alunos entram no 1.º ano do ensino básico. No entanto, já existe na lei a consagração da universalidade do pré-escolar a partir dos 4 anos de idade. O que é que isto significa? Na prática, isto quer dizer que o Estado se obriga a garantir vagas e o acesso à educação pré-escolar a todas as crianças a partir dos 4 anos, caso seja essa a vontade dos seus pais. Ou seja, actualmente prevalece uma importante distinção: a oferta tem de estar assegurada, mas a frequência não é obrigatória. Assim, o que o governo propõe são duas coisas distintas: por um lado, acabar com essa distinção (impondo a obrigatoriedade), por outro lado, reduzir a idade de entrada para os 3 anos (para incluir essa faixa etária).
2. Para entender o alcance da medida proposta, convém perceber-se o problema. Os dados ajudam a enquadrar a situação. Comecemos pelos das taxas de escolarização — ou seja, a percentagem de crianças que, com determinada idade, estão a frequentar o nível de escolaridade correspondente. No ano lectivo 2018/2019, a taxa de escolarização das crianças com 3 anos de idade foi de 84%, abaixo das de 4 anos (95%) e das de 5 anos (98%). Colocando em números absolutos: há quase dez mil crianças a menos a frequentar o pré-escolar com 3 anos de idade quando se compara ao que acontece nos 5 anos de idade. Ou seja, não sendo de frequência obrigatória actualmente, o que constata é que praticamente todas as crianças de 4 e 5 anos já frequentam o pré-escolar, mas que isso já não se confirma para as crianças de 3 anos, onde a taxa de escolarização desce de forma relevante.
3. O que explica este gap para as crianças com 3 anos de idade? O custo financeiro. De acordo com os dados da DGEEC (2019/2020), apenas 41% das crianças com 3 anos estão a frequentar um estabelecimento público (e, por isso, sem custos). As restantes estão a frequentar ensino privado dependente do Estado (isto é, com subsidiação, por vezes suportando alguns custos) ou o ensino privado independente (pagando as mensalidades) — 37% e 22%, respectivamente. A comparação com o que sucede às crianças de 5 anos de idade é reveladora: 60% na rede pública, 24% com apoios e só 16% no privado. Traduzindo: a oferta pública actualmente não chega em quantidade suficiente às crianças de 3 anos, pelo que a opção de frequentar o pré-escolar nessa idade fica condicionada o poder económico das famílias.
4. A situação actual acima descrita é muito melhor do que a que existia há dez anos. Evoluiu-se muito, seja porque houve investimento no pré-escolar, seja porque a queda demográfica fez com que a oferta já existente para os 5 anos de idade fosse suficiente para progressivamente incluir crianças de 4 anos de idade (face à diminuição do número de crianças em cada faixa etária). Mas esses dois movimentos (mais investimento e queda demográfica) não foram suficientes para chegar às crianças com 3 anos de idade. Para que fique inteiramente claro: hoje, a frequência do pré-escolar aos 3 anos de idade ainda está demasiado dependente das condições económicas das famílias — o que, forçosamente, implica a exclusão de milhares de crianças.
5. Os dados acima parecem-me categóricos sobre a necessidade de alargar a universalidade da educação pré-escolar a partir dos 3 anos de idade — ou seja, garantir que há vaga, sem custos, para os filhos das famílias que desejam ter os filhos matriculados no pré-escolar logo nessa idade. Este é o ponto mais importante. E é uma questão de vontade política e de opções orçamentais (por exemplo, ampliando os apoios financeiros às famílias para cobrir os custos do pré-escolar no privado).
6. Chegados aqui, só se lidou com metade da questão da proposta do governo: efectivamente, vale a pena tecer esforços para chegar a mais crianças com 3 anos de idade. Falta a outra metade da questão: para tal, será realmente necessário impor a obrigatoriedade da frequência do pré-escolar a partir dos 3 anos? Os dados acima mostram que, sem obrigatoriedade, as taxas de escolarização já estão próximas dos 100% para crianças de 4 e 5 anos. Como tal, a obrigatoriedade só teria efeitos práticos para as crianças de 3 anos de idade, pois um número significativo delas ainda está fora do pré-escolar. Mas se os custos financeiros deixassem de ser um problema, não seria de esperar que mais famílias optassem pelo pré-escolar logo aos 3 anos de idade? Em princípio, sim. E, se assim fosse, a obrigatoriedade seria tão irrelevante como já o é para as crianças de 4 e de 5 anos, cujas famílias, em liberdade, decidiram matriculá-las no pré-escolar.
7. O raciocínio acima, sendo lógico, não é infalível. Por exemplo, muitas famílias menos informadas e com menos meios poderiam simplesmente considerar que o pré-escolar aos 3 anos de idade é desnecessário. Aliás, muitas já o consideram. E esse é o risco que, a meu ver, justifica a obrigatoriedade: evitar que sejam os mais pobres a ficar para trás. A aposta no pré-escolar e na educação em geral está associada ao perfil socioeconómico das famílias, com destaque para a escolaridade dos pais (e, em particular, a da mãe) e, em média, as crianças que ficam fora do pré-escolar são também as mais carenciadas — aquelas que mais necessitam do apoio da escola para se desenvolverem e ascenderem socialmente. A opção política de tornar a frequência obrigatória serve, na prática, para resgatar as crianças desses contextos desfavorecidos que, sem a obrigatoriedade, ficariam com os seus horizontes diminuídos.
8. Falar de horizontes diminuídos não é exagero: o pré-escolar é um momento determinante. Se há algo que a investigação nas políticas públicas de educação confirmou é que a frequência da educação pré-escolar tem um impacto estrutural no percurso escolar das crianças. Mais: as crianças que frequentam dois ou mais anos de pré-escolar têm uma vantagem futura significativa em termos de aprendizagem face às crianças que apenas fizeram um ano de pré-escolar (e uma vantagem enormíssima face às crianças que não passaram pelo pré-escolar). Esta é uma das conclusões que a análise dos dados do PISA da OCDE revela: a melhoria de Portugal nos últimos 20 anos está também associada a uma maior frequência do ensino pré-escolar.
9. Se alinharmos toda esta informação, não surpreende que a proposta do governo surja num documento que visa combater a pobreza: o problema do pré-escolar aos 3 anos de idade está associado à pobreza (isto é ao perfil socioeconómico das famílias) e a frequência do pré-escolar é um dos grandes promotores do sucesso escolar — de certo modo, funciona como primeiro andar da escola enquanto elevador social. De resto, noutros países, a mesma opção de obrigatoriedade do pré-escolar a partir dos 3 anos começa a ser seguida — embora não seja a norma. Por exemplo, em França, o pré-escolar tornou-se recentemente obrigatório a partir dos 3 anos de idade.
10. A obrigatoriedade tem riscos? Tem, e não devem ser ignorados. Um é este: ao tornar a sua frequência obrigatória, é importante não escolarizar o pré-escolar, desvirtuando as suas virtudes com conteúdos que se aproximariam demasiado do ensino básico. Mas o risco que mais me preocupa é este: passarmos 10 anos a discutir isto, com o Estado a adiar os investimentos que estão subjacentes a essa obrigatoriedade. Como é lógico, a obrigatoriedade só poderá ser implementada quando o Estado assegurar a universalidade do pré-escolar para as crianças a partir dos 3 anos (isto é, quando garantir vagas sem custos para todos os que queiram oferta pública). E isso será quando? Num plano cujo horizonte temporal é 2021-2030, esperemos que seja muito mais no curto prazo.
11. O ponto-chave é este: com ou sem obrigatoriedade, o desafio realmente importante reside na criação de oferta de pré-escolar logo aos 3 anos, sem custos para as famílias. Se abdicar dos preconceitos ideológicos, o governo resolverá o problema rapidamente — recorrendo aos privados e apoiando as famílias. Se insistir nos erros do passado, o governo corre o risco de lançar anúncios que, em 2030, poderão estar por cumprir. E com dezenas de milhares de crianças prejudicadas com isso. Esperemos que não seja assim: seria uma fatura inaceitável, porque completamente desnecessária.