A eliminação das restrições de acesso a determinadas profissões pelas respetivas ordens é um dos principais objetivos da proposta de Lei, aprovada em Conselho de Ministros, que revê o estatuto de 20 ordens profissionais.
Os principais objetivos da reforma das ordens profissionais, passa por limitar os entraves de acesso às profissões, eliminando esperas e custos desnecessários, sobretudo para os jovens que pretendem aceder às profissões; garantir maior justiça e combater a discriminação socioeconómica no acesso das novas gerações às profissões; evitar que os estágios das ordens sejam uma repetição da formação das universidades, com prejuízos para os jovens profissionais, adiando injustificadamente a sua entrada no mercado de trabalho; reforçar o trabalho de interesse público das ordens profissionais e de garantia da qualidade dos serviços prestados, através da criação de um provedor de beneficiários dos serviços; aumentar a independência, isenção e autonomia da função regulatória das ordens profissionais.
Esta reforma consta do Programa do Governo e revela-se essencial para o cumprimento de uma das reformas “com maior relevo” no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Esta reforma das profissões reguladas já vinha a ser reclamada pela Comissão Europeia, pela OCDE e pela Autoridade da Concorrência.
Pois bem, esta sexta-feira, dia 30 de novembro foi promulgada a revisão dos estatutos da minha Ordem, a Ordem dos Médicos Dentistas.
Os objetivos desta reforma, em boa verdade, parecem concretos e com um sentido de adequação às normas europeias, mas…. cada ordem tem as suas inquestionáveis especificidades, e “Portugal não é a Dinamarca”, logo tudo deverá ser adequado a cada realidade.
A mim preocupa-me em especial, o teor do artigo oitavo ponto 2, que diz “O disposto no número anterior não prejudica o exercício dos atos nele previstos por pessoas não inscritas na OMD, desde que legalmente autorizadas”.
Durante este processo, e ao tomar nota de que a minha ordem profissional, não estaria a conseguir defender este ponto com a devida convicção, aliás ao contrário de todas as outras ordens, tentei o impossível. Pedi audiência ao Senhor Presidente da República, que pelo pouco tempo que dispõe, pediu através dos seus assessores para enviar e-mail com o que achava sobre as minhas preocupações. E assim o fiz.
Anexei o seguinte sobre o ponto mais preocupante: Esvaziamento dos atos próprios da profissão de médico dentista:
Depois de se consignar, no art. 8.º-A, n.º 1, da Proposta de Lei, que “são atos próprios do médico dentista o exercício em exclusivo da atividade diagnóstica, prognóstica, de vigilância, de investigação, de perícias médico-legais, de codificação clínica, de auditoria clínica, de prescrição e execução de medidas terapêuticas farmacológicas e não farmacológicas, de técnicas clínicas, cirúrgicas e de reabilitação de promoção da saúde oral no quadro da saúde sistémica do indivíduo e prevenção da doença oral, quando praticada por médicos dentistas, no respeito pelos valores éticos e deontológicos da medicina dentária.”, dispõe o seu n.º 2 que “o disposto no número anterior não prejudica o exercício dos atos nele previstos por pessoas não inscritas na Ordem, desde que legalmente autorizadas para o efeito”
Justifiquei: “É clarividente o esvaziamento da regra por parte da excepção, do mesmo modo que os direitos fundamentais consagrados no corpo do art. 8.º da Constituição de 1933 eram esvaziados pela remissão para Lei avulsa a respeito do exercício das liberdades então consagradas. Existe, assim, uma absoluta falta de densificação normativa, que, ao outorgar poderes discricionários ao legislador, determina a inconstitucionalidade na norma por violação do art. 266.º, n.º 2, da Lei fundamental.”
Mais escrevi, “Louvo-me na lição de Rebelo de Sousa / Salgado Matos: “a reserva de lei não pode esgotar-se numa mera precedência de lei: se assim fosse, seria possível que normas em branco permitissem à Administração agir de forma por ela não especificada ou mediante pressupostos também não individualizados; no limite, uma única norma poderia permitir à administração fazer virtualmente tudo”; “a reserva de lei exige, portanto, que a norma habilitante da actuação administrativa tenha uma determinada densidade – ou seja, um determinado grau de especificação e pormenorização, quer dos pressupostos, quer dos meios, de tal actuação”
O ponto chave! “Não pode assim ser promulgada norma que se mostra, à evidência, inconstitucional, anulando o próprio conceito de atos próprios da profissão de médico dentista.” (Rebelo de Sousa / Salgado Matos, Direito Administrativo Geral Tomo I, 2010, p. 176. e Moniz Lopes; Derrotabilidad normativa e normas administrativas – O enquadramento das normas regulamentares na teoria dos conflitos normativos, Partes II e III, Lisboa, AAFDL, 2019. p. 175.)
Creio que ficou tudo dito sobre este ponto, ficando desta forma, o percurso do médico dentista, que como tenho referido em muitos artigos, um deles onde falo na pirâmide invertida da saúde oral: “Quando falo em pirâmide invertida refiro-me aos médicos dentistas (cerca de 17.000 inscritos, 11.000 no ativo) que não conseguem chegar à população. O que está a acontecer com estes médicos dentistas em excesso? Emigram.
Ou seja, estamos a formar estudantes para emigrar. Uns trabalham nos centros de saúde como técnicos de saúde, sem uma verdadeira carreira no SNS como todos os outros profissionais agregados aos mesmos; outros confrontam-se com o subemprego; As clinicas privadas assombradas por taxas e taxinhas, impostas por inúmeras entidades com sobreposição de funções, encontram-se asfixiadas, algumas acabando por encerrar portas.
Como todos sabemos, os médicos dentistas não estão inseridos nos hospitais, resultado disso o trabalho dos estomatologistas nos centros de estomatologia hospitalar existentes, que se “desdobram” e lutam pela comunidade. São cerca de 140 espalhados de norte a sul de Portugal Continental.”
Onde está a parte de “garantir maior justiça e combater a discriminação socioeconómica no acesso das novas gerações às profissões reguladas por ordens profissionais”?
Dito isto, e se outros profissionais, muito próximos da nossa profissão, realizarem os nossos atos, os médicos dentistas e estomatologistas, que cada um com formações diferentes, e com um percurso de estudo intenso, ficarão ainda mais suscetíveis para conseguir alcançar os seus desígnios. Assim como a população, com acesso reservado e balizado pelo fator económico e conjuntura do país à saúde oral, fiará à “mercê “desta subjetividade na lei.
Creio que não são estes os objetivos do Governo quando diz querer reforçar o trabalho de interesse público das ordens profissionais e de garantia da qualidade dos serviços prestados”.
Segue um apelo aos decisores políticos para reverterem a situação e evitar graves prejuízos para a população e para a classe, em especial para os jovens médicos dentistas.