O socialista presidente da Câmara de Loures, Ricardo Leão, pôs o PS em alvoroço com duas declarações. Numa, que era óbvio que quem beneficia de casas municipais deve perder a sua habitação caso cometa qualquer tipo de crime. Noutra, que a autarquia deve deixar de subsidiar as refeições escolares de crianças cujos pais têm possibilidade de as pagar.

O PS bem-pensante ainda está a organizar as ideias para perceber como é possível que um socialista, um homem de esquerda, fale assim. No entanto, seria bom para o próprio PS que os seus dirigentes não discriminassem de pronto um autarca que conhece o terreno que pisa. Ricardo Leão vive a experiência que outros como ele passaram há mais de 20 anos em França, quando os socialistas franceses fecharam os olhos às graves injustiças sociais e à violência que a maioria da população sofria em certos bairros nos subúrbios das grandes cidades. Pedro Nuno Santos sabe, como todos nós sabemos, o que aconteceu aos socialistas franceses quando o eleitorado que votava à esquerda (PSF e Partido comunista francês) passou a votar à direita (na então FN).

O fenómeno é conhecido e numa crónica de Junho de 2021 brinquei com a possibilidade de a venda da sede do Partido Socialista Francês, a famosa ‘Solfé’, assim carinhosamente chamada por se situar na luxuosa rue de Solférino, em Paris, poder ser um prenúncio da venda do edifício rosa do Largo do Rato. É um assunto em que estou relativamente à vontade, pois há anos que tenho dito, neste espaço ou no Contra-Corrente da rádio Observador, que o Chega é a maior ameaça eleitoral do PS.

As transformações sociais e políticas chegam tarde a Portugal, mas acabam por se fazer sentir. O PS de António Costa brincou e fez uso do surgimento do descontentamento social contra a imigração para alimentar um novo partido à direita. Costa julgou que assim dividia o PSD, uma estratégia bem-sucedida a curto prazo mas que, como já se percebia em 2021, pecava por ser curta de vista e perigosa para o próprio PS.

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Os resultados estão à vista. Na necessidade de um autarca socialista ter de lutar pelo seu eleitorado tradicional com as mesmas armas de um partido de direita radical e também no duro combate político que PS e Chega travaram à volta do Orçamento de Estado.

A novela sobre a aprovação ou chumbo do OE foi encarada como uma disputa entre governo e oposição. Mas a verdade não era essa. Nunca foi. O verdadeiro embate, o que interessa para o futuro, foi travado entre o PS e o Chega. Qual deles ia permitir que o OE passasse? Qual deles o iria chumbar? Qual deles se poderia assumir como principal partido da oposição?

Foi um confronto difícil para ambos, por sinal um pouco mais fácil para o Chega pois, ao contrário do PS, a mera abstenção do partido de André Ventura não permitia a passagem do orçamento. O sacrifício (e o custo político) era menor para o PS e daí a cedência socialista depois da malograda tentativa de empurrar o Chega para o voto a favor (e que não aconteceu porque Montenegro fez os possíveis para o evitar).

Tal como sucedeu em França e nos EUA, o eleitorado português que antes votava à esquerda está a virar-se para a direita. Isso não significa que queira menos estado e mais iniciativa privada. Nada disso. A mudança não se refere ao posicionamento desse eleitorado face ao estado, mas do estado face aos imigrantes e aos cidadãos que abusam das políticas públicas. A percepção de que os imigrantes se aproveitam dos benefícios do estado social alimenta um sentimento desprezo face aos estrangeiros que, por sua vez, reactiva a veneração e o respeito pelo que é nacional.

O receio que os socialistas de esquerda têm dos socialistas de direita é também evidente no Reino Unido, com o Labour cada vez mais preocupado com a possibilidade de vir a perder votos para o Reform UK, de Nigel Farage. O líder do partido populista de direita também quer aproveitar o descontentamento das classes média e trabalhadora com a imigração e o aumento do custo de vida, a que se junta as dificuldades crescentes de um estado endividado em providenciar, com justiça, políticas públicas capazes.

Ou seja, assistimos a uma viragem do eleitorado à direita no que toca a valores e referências, apesar de o entendimento sobre o papel do estado se manter inalterado, fora algumas correcções relativas a abusos e a ênfase colocada na valorização de tradições nacionais. Em Portugal, a luta entre o PS e o Chega baseia-se nesta realidade e traduz-se na disputa pelo mesmo eleitorado. Um dos dois terá de desaparecer. De momento os ventos não são favoráveis ao PS, como o episódio do autarca de Loures bem ilustra. Num primeiro tempo, vimos a Chega a defender políticas socialistas. No futuro próximo é provável que o PS defenda políticas securitárias.