Não foi fácil para os socialistas venderem a ‘Solfé’, como carinhosamente era conhecida a sede do partido na rue de Solférino, ali tão pertinho do Museu D’Orsay e a dois passos da Assembleia Nacional, em Paris. Cultura e política; o elitismo puro e duro que os socialistas herdaram da vitória de François Mitterrand, fez 40 anos no passado dia 10 de Maio. O que os fez subir, fê-los cair.

Mitterrand foi, na Quinta República, o primeiro socialista a chegar ao Eliseu porque uniu o eleitorado que o apoiara na primeira volta (alguns operários, classe média e pensionistas) aos do Partido Comunista (maioritariamente operários). O povo, de acordo com a concepção marxista. Soares repetiu o feito cinco anos mais tarde. Em 1981, Jean-Marie Le Pen não conseguiu candidatar-se e a Frente Nacional nem sequer foi a votos. 40 anos passados, o PS francês vive na rua da amargura e a filha de Jean-Marie está praticamente garantida na segunda volta das presidenciais daqui a onze meses. O que é que aconteceu ao eleitorado do Partido Socialista francês?

A resposta é lapidar: vota na extrema-direita. Na Frente Nacional (agora denominada Reagrupamento Nacional).

Isto simplesmente sucedeu porque a esquerda francesa não evoluiu nem adaptou o discurso político à nova realidade. Não conciliou a até então defesa dos trabalhadores com a queda do comunismo e com o sucesso que foram os governos de Margaret Thatcher e Ronald Reagan. (É impressionante que ainda se sintam as ondas de choque provocadas por estes dois estadistas, mas é mesmo assim; talvez por isso tantos ainda menosprezem o seu legado reduzindo-o a um cariz meramente económico e esquecendo as alterações culturais que Thatcher e Reagan permitiram). Para se compensar, o PS francês refugiu-se na defesa dos jovens politicamente correctos, dos direitos adquiridos, das minorias (quaisquer que estas sejam), da cultura (o que quer que esta possa significar) e por aí em diante. Tornou-se elitista. Como resultado a sua base eleitoral fugiu para a extrema-direita.

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Um exemplo claro deste fenómeno está espelhado na circunscrição de Aisne, a norte de Paris e uma região anteriormente com forte implantação da esquerda. Para termos uma ideia do desaire socialista na zona teremos de dar atenção à variação dos votos nas últimas décadas nesta circunscrição. Vejamos: nas presidenciais de 1965, Mitterrand alcançou o segundo lugar e foi à segunda volta contra Charles de Gaulle. Perdeu por menos de 20 mil votos. Já nas presidenciais de 1974, o mesmo Mitterrand venceu na primeira e na segunda voltas contra Valéry Giscard d’Estaing, feito que repetiu em 1981 na segunda volta (na primeira o candidato socialista viu parte da sua votação a ir para o comunista Georges Marchais que conseguiu mais de 20% dos votos expressos). Mas isto foi há muitos anos. No passado recente (2017) quem venceu na primeira volta já não foi o PS, mas a Frente Nacional com pouco mais de 35%; os socialistas ficaram-se pelos 4%. Quanto aos comunistas nem vê-los. Desapareceram do mapa. De salientar que nos anos 80 os comunistas também eram contra a imigração. O eleitorado, esse, continua no mesmo sítio só que vota na extrema-direita ao ponto de, nas eleições regionais deste Domingo, a luta eleitoral na região de Les Hauts-de-France, onde Aisne se situa, ser entre o presidenciável Xavier Bertrand (de direita) e Sébastien Chenu do partido de Marine Le Pen.

O que sucedeu aos socialistas e à esquerda francesa em geral devia ser um sério aviso à esquerda portuguesa. É certo que em Portugal o PS sobreviveu, apesar de incapaz de afastar um Primeiro-Ministro corrupto, como também se aguentou, apesar de responsável pela bancarrota do Estado português (que só a intervenção da troika e o governo de Passos Coelho evitaram). O sucesso do socialismo luso reside no dinheiro aparentemente grátis do BCE e na ausência de fracturas raciais como as que existem em França. Alicerça-se ainda numa boa parte do eleitorado que depende financeiramente do Estado e que vota na segurança e na estabilidade salarial.

Mas essa construção político-eleitoral que o PS montou não está isenta de riscos. Como tive oportunidade de referir há duas semanas neste espaço, basta que a inflação ressurja para que o BCE ponha termo à sua política monetária, ou simplesmente que a abrande; basta que uma pequena parte do eleitorado se farte da corrupção, do compadrio, das ligações familiares, das cercas sanitárias sem base constitucional mas feitas para pôr em xeque o presidente; basta que o PS deixe de garantir a maioria de governo e o eleitorado que quer ordem procure segurança noutras paragens; Nesse dia, não há volta a dar. Nesse dia os socialistas vão lamentar-se de Fernando Medina não ter assumido responsabilidades políticas por um acto administrativo que teve consequências políticas. Nesse dia, será tarde demais.

Até porque se tirarmos o pagamento de ordenados o PS tem pouco ou nada para oferecer. Salvar a TAP? Uma empresa falida que vamos ficar décadas a pagar. O SNS? Não será com certeza com as cativações, que são o preço dos aumentos salariais necessários para manter o eleitorado. Educação? O abandono em que o Estado deixou os mais desfavorecidos durante o confinamento não será a melhor folha de serviços. Cultura? A defesa de um feudo de beneficiários pode tornar-se num muro entre a população e o poder político. Investimento Público? O dinheiro que resta pouco mais serve que para pagar salários e pensões. Por alguma razão os socialistas encaram o Plano de Recuperação e Resiliência como um náufrago olha para uma bóia.

Não sei quem tomará o lugar do PS. Pode ser a extrema-direita? Pode. Uma de cariz lusitano, tão inculta e intelectualmente pobre quanto os actuais socialistas, também estes com características lusitanas. Digo actuais porque, a acontecer, alguns mudarão de campo. O mais certo é que as caras e as famílias sejam as mesmas. Se o eleitorado muda de ares, porque não também os políticos?

O ‘Solfé’ foi vendido por 45 milhões de euros em Outubro de 2018. Quanto é que valerá aquele edifício cor-de-rosa que fica no Largo do Rato?