Um barulho seco e fundo. Um grito demorado de quem viu. Uma plateia pronta a distribuir responsabilidades e a reclamar pela falta da passadeira. Ainda não lhe tinham caído os dentes de leite nem experimentado a roda gigante e já Samuel seguia o caminho sozinho. Do seu funeral lembro-me apenas do passeio de autocarro, o frio da igreja e o cheiro a flores. Foi um dia bonito, sem perceber que era um dia triste. Partiu inocente e eu assisti inocente.
Era uma quinta-feira do final de junho, o sol estalava as vidraças e já se faziam as primeiras investidas à praia. Mas para o Luís, era o início de um verão que se previa penoso à conta das faltas injustificadas. Ainda se cruzaram no caminho, ele no sentido de casa e a mãe para a escola. Ficou o aviso: “Logo falamos”, mas o rapaz já tinha decidido que haveria de se vingar e puxar do gatilho na arrogância dos seus 17 anos. Todos morremos um pouco, penámos da culpa de não termos percebido os sinais. Ficou a memória e cumpriu-se a sua suposta imortalidade.
Vi-a de costas mas duvidei. Faltava o cabelo longo e os cachos rebeldes. Quando me enfrentou não consegui disfarçar a perturbação. De tudo o que o cancro tira, a falta de cabelo é o que mais me agonia. Ridículo, são livres de pensar, mas para mim é o bilhete de identidade da doença. Volto à Fernanda, àquela mulher de trato fácil, mãe atenta, cujo conforto chegava em detalhes, como no dia em que bordou as minhas iniciais numa toalha de linho e entregou-ma debaixo de uma chuva torrencial. Molhada da cabeça aos pés mas com um sorriso grande e aberto, o mesmo que enverga agora, envolto num turbante azul turquesa. Cumprimentei-a, soube-lhe as dores, abracei-a tão profundamente que ainda lhe sinto o perfume. Desejei-lhe o melhor que o meu coração conseguia. Combinamos um café para depois da doença, pois talvez existam cafés na eternidade para cumprir o nosso encontro.
Todos nós já choramos histórias assim. Porque os que partem cedo são como livros inacabados, com o fulgor dos primeiros capítulos mas sem tempo suficiente para incluir dedicatórias e agradecimentos. Para os que ficam, restam-lhes memórias desorganizadas, decompostas em pequenos excertos e povoadas de erros, próprios de quem não teve tempo para fazer revisões. São narrativas que nos fazem tomar consciência que a finitude acontece em qualquer dia, qualquer que seja a idade, contrariando a ordem natural. É a vida a colocar-nos no lugar, a puxar-nos pelas orelhas e a gritar-nos a sua atenção. É um murro no estômago que nos dobra e diminui. Torna-nos frágeis e débeis perante o que não controlamos e nos amedronta.
O que fazemos com esta lição? Baixamos a cabeça e repetimos incrédulos: “Era tão novo”, na tentativa vã de encontrarmos uma justificação que nos conforte, resolva a nossa angústia e sossegue as nossas dúvidas. Mas a morte não tem sentido, não tem lógica nem agenda e obviamente não faz parte dos nossos planos.