Em tempos muito antigos, havia eleições e esperava-se que quem elegesse mais deputados governasse. Também havia referendos, e era suposto os governos executarem as opções mais votadas. Os tempos, porém, mudaram. Agora, quando há referendos, a opção escolhida pode ser ou não aplicada, como temos visto no Reino Unido. E quando há eleições, pode ou não haver governo, como em Espanha, que vai na segunda eleição deste ano. A democracia já foi um meio de, através do voto popular, formar governos e tomar decisões. Neste momento, em alguns países da Europa, parece um meio de não tomar decisões e de impedir que haja governos.
A última noite eleitoral espanhola pôs toda a gente a meditar sobre a maneira de sair deste “bloqueio”. É aliás curioso que o impasse da governação já cause mais impressão do que a subida do Vox, à boleia da subversão separatista na Catalunha.
A receita mais popular para romper o “bloqueio” parece ser esta: é preciso que os partidos se entendam. Acontece que não é uma expectativa razoável. Os partidos sabem que, com um eleitorado tão flutuante como o actual, pactos de governo são sempre o lugar do morto para alguém. O “bloqueio” de que toda a gente fala resulta do medo de cada um dos partidos se comprometer em acordos, não apenas com os adversários do outro lado da divisão entre esquerda e direita, mas até com os seus rivais na mesma área política. É bom recordar que o sistema partidário em Espanha, depois de anos de alternância entre o PSOE e o PP, pareceu, até estas últimas eleições, em transformação, como na Grécia ou em França. Tudo, em certa altura, era possível. Em 2016, o PSOE teve o Podemos a 1,3 pontos percentuais. Falou-se então na possibilidade de o Podemos ultrapassar e substituir o PSOE, como o Syriza fez ao Pasok na Grécia. À direita, houve um momento parecido em Abril deste ano, quando o PP ficou com o Ciudadanos à distância de 0,8 pontos percentuais. Ora, nada disto facilitou quaisquer entendimentos.
Que devia fazer um partido? Por exemplo, o PSOE: pactuar com o PP, seria deixar o Podemos liderar o “progressismo”; governar com o Podemos, seria dar credibilidade e poder ao seu rival. O jogo revelou-se ainda mais abrasivo para os novos partidos. Dos seus píncaros, o Podemos tem agora metade da representação parlamentar de 2016, e o Ciudadanos, um quinto da de Abril deste ano. Ambos aprenderam, da pior maneira, que é fácil mobilizar frustrações e suscitar esperanças, mas mais difícil fazer alguma coisa com elas. Qual a melhor atitude perante os velhos partidos? Colaborar, perdendo o prestígio da novidade? Ou ser intransigente, correndo o risco da irrelevância? Nem o Ciudadanos nem o Podemos resolveram o problema quando, em teoria, o podiam resolver. Agora, já não podem. Resta o Vox. Mas será capaz de escapar à mesma confusão estratégica?
Que resta, senão esperar que os votos se voltem a concentrar no PSOE e no PP, de modo a haver outra vez maiorias absolutas de um ou do outro (como ainda aconteceu em 2011)? Mas maiorias absolutas para quê? Qual é, nas circunstâncias actuais, a diferença entre haver governo e não haver governo? As finanças dos países do euro são controladas pela UE; as suas fronteiras, no que diz respeito a migrações, são guardadas pela Turquia e pelas milícias líbias; a sua defesa depende dos EUA. Há mais matérias para discutir na Europa, como a viabilização dos serviços públicos, mas ninguém sabe como tratar disso sem ofender uma parte do eleitorado. A opção tem sido nada fazer ou pouco. Entre haver governo e não haver, desde que haja administração, qual é mesmo a diferença?