O Partido Socialista perdeu as eleições, mas o Partido Socialista não perdeu as eleições. Sim, é uma contradição. Deixem-me explicar. O Partido Socialista perdeu as eleições porque desceu de 41% para 28% da votação. Ao fim de oito anos no governo, caiu do cimo de uma maioria absoluta após meses de governação instável e no meio do colapso dos serviços públicos, que em 2015 dissera ter vindo salvar. A esquerda, em nome da qual o PS governou, foi rejeitada pelo país, e passou a ter no parlamento a expressão mais reduzida desde 1991. A derrota, deste ponto de vista, não podia ser maior: o país mudou, e o PS e a esquerda ficaram para trás.
Mas o Partido Socialista não perdeu as eleições porque, desde que a direita se tornou plural em 2019, o PS conseguiu levar o PSD a cercar-se de “linhas vermelhas”, de modo que em vez de enfrentar uma grande maioria reformista, o PS e a demais esquerda formam afinal um dos “três blocos” em que está dividido o parlamento, e são até o maior. Deste ponto de vista, a derrota não podia ser mais relativa: o país não mudou, apenas se complicou, e o PS e a esquerda continuam em jogo.
Eis a diferença que faz a esquerda ter o poder político e cultural necessário para determinar o que, à direita, é ou não é aceitável. Sem as “linhas vermelhas”, talvez pudesse ter havido uma organização das direitas para exercer um mandato reformista durante a legislatura. Neste momento, estaríamos a discutir por onde iriam começar as reformas, e o PS andaria a preparar-se para pelo menos quatro anos de oposição. Mas com as “linhas vermelhas”, temos “três blocos”, todos convencidos de que podem melhorar os seus resultados em novas eleições, e sem qualquer interesse em se entenderem. Ouçam os comentadores e leiam os colunistas: ninguém fala de reformas, e todos falam do que cada partido pode ou deve fazer para ganhar o campeonato. Toda a gente, do governo à oposição, está em modo de “combate”. Entrámos num tempo que será sempre pré-eleitoral, mesmo no período em que o presidente não puder dissolver o parlamento.
É, portanto, inútil esperar qualquer governação reformista. O PSD teve um resultado medíocre, mas é a primeira vez desde 1991 que chega ao governo sem precisar de congelar carreiras e cortar pensões. Tem perante si, devido às “linhas vermelhas”, um Chega convicto de que pode crescer se colar o PSD ao PS, e um PS persuadido de que pode recuperar o poder se colar o PSD ao Chega. Bem podem os patriotas recomendar ao PSD que se gaste a tentar passar, em minoria, reformas controversas, como todas as reformas. Os habilidosos dir-lhe-ão que faça como o PS fazia: use o orçamento para saciar funcionários e pensionistas, e depois leve a oposição a derrubar o governo. Reformar significa devolver recursos à sociedade civil, não só porque os indivíduos os usarão mais produtivamente do que o Estado, mas porque famílias e comunidades autónomas são essenciais à democracia. Nenhum “governo de combate” pode, porém, prescindir de recursos, perder influência, diminuir o seu poder. Em guerra, ninguém abdica de armamento.
Um dia, por causa das reformas, um primeiro-ministro disse “que se lixem as eleições”. Aos actuais governantes, por causa de eleições que podem chegar a qualquer momento, talvez só lhes reste dizer “que se lixem as reformas”. A divisão do que poderia ter sido uma maioria reformista, através das “linhas vermelhas”, deixou tudo no ar, e matou por isso o reformismo. Todos os partidos vão ser tentados a jogar duramente, como se viu na eleição da mesa da Assembleia da República ou na tomada de posse do governo, boicotada pela esquerda. Não lhes devemos desejar boa sorte a eles, mas ao país.