É evidente que, de forma mais ou menos subtil, todos partimos do pressuposto que precisamos de saber quem somos. E que o “quem sou eu?” é a alma e o coração do nosso crescimento. É verdade que uma pergunta como essa supõe que nunca será um pormenor insignificante olhar-mo-nos com olhos de ver e nos perguntarmos se a nossa vida tem (ou não) a nossa cara. E, o que não é menos importante, se estamos a mandar na vida ou se somos, simplesmente, mandados por ela.

“Quem sou eu?”, mais do que nos conhecermos (melhor), supõe reconhecermo-nos. Identificarmo-nos. Nunca perdendo de vista que reconhecer será, também, agradecer. E assumir a responsabilidade. Identificar, agradecer e responsabilizar. Será por isso que o “quem sou eu?” supõe coragem. E, só por si, nos deixa a sensação que nos transformamos só de ficarmos mais iguais a nós próprios. E aumenta-a quando, após o “quem sou eu?”, surgem os desafios da mudança. Ao contrário do que se foi dando a entender, o “quem sou eu?” não é um exercício esdrúxulo, interminável e inconsequente. Mas muito menos é verdade que um qualquer livro de auto-ajuda promova a mudança sem sequer tocar no “quem sou eu?”.

É verdade que o “quem sou eu, neste momento?” se faz das nossas escolhas. Somos as escolhas que fazemos! Mas talvez elas, quase todas elas, não tenham sido bem escolhas de verdade. Escolhas desenhadas. Escolhas projectadas. Escolhas ancoradas no nosso desejo. Teremos, realmente, escolhido este ou aquele amigo? Teremos desejado amar “aquela pessoa”, ou tocou-nos mais o modo como ela gostava de nós? Teremos desejado ter um filho ou as coisas aconteceram e adaptámo-nos a elas e deixámo-las correr? Teremos escolhido os diversos passos da nossa carreira ou tudo foi acontecendo e fomos “apanhando as ondas” do momento e fomos andando? Vendo com verdade, grande parte das escolhas que fazemos não são bem as “nossas escolhas”. Foram as coisas que nos “escolheram” a nós. E fomo-las aceitando assim; com espírito de missão. Fomos andando. Mas o problema maior do modo como as nossas escolhas desembocam no “quem sou eu?” não passa tanto pelas escolhas que não fizemos, a determinado momento. Mas com as escolhas que não fomos fazendo diante das consequências das escolhas iniciais que não fizemos.

É evidente que – da mesma forma como falamos do instinto materno para dar a entender que por trás duma fêmea há sempre uma mãe que, por exemplo, sabe amamentar (o que não é verdade) – partimos do pressuposto que basta sermos pessoas para sabermos pensar. Para discorrer sobre a forma como aquilo que somos se casa com tudo o que sentimos. Como se fossemos uma inacreditável e calibrada máquina pensante; e não é assim. A ansiedade ou a depressão, por exemplo, são sinais vitais típicos da discrepância entre todos os “quem sou eu?” e todos os “em que é que me tornei?”. Portanto, a saúde mental não se mede só pelos milhões de embalagens de ansiolíticos e de anti depressivos consumidas pelos portugueses. Mas pela forma como uma imensa maioria deles se fecha na imagem que deve dar, naquilo que supostamente deve mostrar, deixando ao abandono todos os “quem sou eu?Tudo o que os faria mudar de verdade.

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A sociedade da imagem em que todos vivemos é, também, a sociedade dos pequenos rancores. (Rancores são ressentimentos que se protegem da culpa.) Como se as nossas falhas fossem sobretudo uma responsabilidade dos outros. E quase nunca das nossas escolhas. Como se nos sentíssemos sempre vítimas de tudo o que as condicionou muito mais do que da nossa responsabilidade. Como se aquilo que nos falta acabasse por ser sempre muito mais culpa do mundo não se adaptar àquilo que queremos do que por não termos sabido crescer com ele.

É engraçado como nos fomos afastando da religiosidade e construindo uma ideia de que a ciência nos dá a ilusão de controle e duma grandiosidade que não temos. E como isso nos foi alimentando a ilusão de que somos muito maiores do que aquilo somos. E nos foi afastando da culpa. De perguntas como “onde é que eu falhei?”, “qual foi o meu erro?” ou “como que posso fazer melhor?”.

É por isso que hoje somos, nalgumas circunstâncias, piores pais. Não tanto porque estraguemos os nossos filhos com mimos. Mas porque os educamos, vezes demais, para serem grandes. Ora, quando Ptolomeu entendeu construir a biblioteca de Alexandria, a grandiosidade a que chegou fez-se quando trouxe a escrita de inúmeros sábios para o pé de si. Ou quando os portugueses “destroçaram” fantasmas e monstros, e trouxeram novos mundos ao mundo, fizeram-no com o auxílio de emigrantes sábios de várias paragens com quem  aprenderam a arte de marear. Quem se tornou grande, ao longo de toda a história, fê-lo sempre que reconheceu as suas limitações e aceitou a sua pequenez. E deixou de o ser sempre que a grandiosidade lhe toldou a humildade e o orgulho desmedido o impediu de escutar.

Aquilo que, hoje, parece que nos envergonha é a forma como não reconhecemos que a maioria das nossas escolhas nos tornam pequeninos. Talvez porque elas se tenham feito de coisas que nos “escolheram” a nós. Aquilo que escolhemos sem escolher. Como se fosse uma vergonha sermos pequeninos. Sobretudo diante das escolhas que não fizemos. Diferentes das outras que fomos fazendo, como toda a gente, tomados pelas dúvidas mas, todavia, movidos por uma convicção.

Não vejo que seja possível perguntarmos quem somos sem que perguntemos quem temos. Não, não será tanto o que é que temos. Mas quem é que temos. E, sim, é verdade que somos todos muito mais lestos a elencar aquilo que não temos, o que nos falta (sobretudo quando nos comparamos a outros que o tenham), do que aquilo que nos orgulha termos conquistado. As nossas conquistas fazem-se de pessoas que nos ajudaram a desenhar uma escolha. E, por causa dela, a sermos quem somos. Fazem-se ancoradas no orgulho de termos merecido a sua atenção e o seu amor. E com a gratidão por terem contribuído para sermos quem somos. Mas as escolhas também nos adormecem; quando olhamos para as pessoas com quem as fizemos e nos deixámos de reconhecer nelas.

É por isso que entre o “quem sou eu?”e as escolhas que fizemos e todos os “o que é que me falta para ser eu?” compormos uma imagem parece ser uma forma simples e rápida de mudarmos quase tudo sem se mexer em quase nada. Talvez seja por isso que sejamos todos tão dependentes de uma sociedade que faz com que a imagem prevaleça sobre o ser. Que faz com que a imagem acentue a prosperidade que exibimos sobre a distância que vai entre o “quem sou eu?” e tudo o resto que fica de todos os “em que é que me tornei?”. A imagem parece transformar tudo o que somos num labirinto de alfarrabistas mais ou menos esquecido. Talvez vivamos, realmente, num tempo de ressentimentos. Onde a culpa diante de tudo aquilo em que nos tornámos pareça ser sempre mais ou menos interdita. Num mundo de imagem prevalece o positivo. Num mundo verdadeiro, a gratidão por tudo o que conquistámos e a culpabilidade por tudo o que perdemos.

Por tudo isto, preocupa-me quando vejo inúmeros adolescentes afirmarem como projecto de vida “ser diferente, nalguma coisa”. Ser-se diferente nalguma coisa supõe que um apontamento de imagem engula aquilo que parece ter transformado a identidade numa aridez. É por isso que me inquieta ver muitos jovens escolherem uma profissão por causa do dinheiro que venham a receber, como se todas as escolhas que pudessem fazer se tornassem insignificantes diante da forma como “prostituem” os sonhos. Ou, quando depois de licenciados, se propõem a desafios exóticos ou ao afastamento prolongado dos seus, como se só os exercícios de superação os trouxessem aos fundamentos da sua identidade. Ou como se só a distância os deixasse ser quem são à margem das escolhas que não fizeram em presença dos pais. Ou tão depressa parecessem fazer, hoje, uma escolha. Amanhã, uma outra que não tem nada a ver com a primeira. Depois, uma terceira, mais estranha e mais atípica. A seguir, outra, ainda, que não tem nada a ver com tudo o que terão “desejado” até aí. Quando é assim, talvez nos estejam a dizer que querem tudo. E que acham que podem ser tudo. O que, para além de ser um gritante apelo à procura do “quem sou eu?”, queira dizer que eles estão longe, ainda, de descobrir que escolher é renunciar a querer tudo. Que escolher é ousar reconhecer e eleger um desejo. E lutar, contra todas as tormentas, para que ele se palpe e exista fora daquilo que imaginámos. Os nossos filhos escolhem pouco. Pouco demais. É o que é.

“Quem sou eu?” traz consigo, também, “o que é me falta para ser eu?” Ou “que escolhas preciso de fazer para lá chegar?”. Ora, é aqui que os gurus da motivação vêm o mundo ao contrário. Não é a motivação que funda a escolha. Mas são as escolhas que lavram a motivação. (A escolha, primeiro, é fé. Uma convicção que se impõe às dúvidas e ao medo. Depois, um exercício de disciplina. E um trabalho. Só depois, em função dos resultados de tudo isso, uma motivação). Logo, um mundo onde a imagem prevalece sobre o “quem sou eu?” acarinha mais a auto-estima, quando ela vem de fora para dentro, do que ancora no orgulho, que vem de dentro das nossas escolhas para o meio das escolhas dos outros. Indo por aí, é um mundo que se aproxima muito mais dum reality show do que da biblioteca de Alexandria. É por isso que qualquer pequena particularidade que leve um pequeníssimo grupo de pessoas a encontrarem um marco que as distinga dos outros as encaminha para se considerarem uma minoria. E para reclamarem direitos sobre a forma como catapultam esse marco e o elegem como coluna vertebral da sua identidade. Que estranho que é um mundo que não entende a identidade como o resultado de todas as identificações que fazemos em relação a todas as nossas escolhas! Que, por isso mesmo, nos tornam únicos e irreplicáveis. E, só por isso, mais bonitos, ainda, quando isso nos encaminha para todos os “o que é que me falta para eu ser eu?’ Quando o mundo se acha mais democrático quando salvaguarda todas as pequeninas coisas que levam a que as minorias se entendam como minorias, alimenta os pequenos rancores. E esquece a dignidade humana. Como se a imagem prevalecesse sobre o ”quem sou eu?” da identidade. Como se a identidade se resumisse à imagem. E se baseasse num pormenor que as pessoas mudam. Ou a uma pequena coisa que escolhem para que tudo nelas se mantenha na mesma. Ora a identidade é um todo. Ou é tudo, se preferirem. Feito das escolhas que fizemos. Das coisas que nos escolheram a nós. Daquilo que não escolhemos. E das escolhas que nos esperam diante das consequências das escolhas iniciais que não fizemos.

Por isso mesmo, o mundo não se divide em nativos e estrangeiros. Em pretos ou brancos. Em esquerda ou direita. Em homo ou em heterossexuais. Em familiares ou em estranhos. Como se, consoante o ponto de vista, uns tivessem mais dignidade que os outros para serem quem são. O mundo é feito de pessoas. Não de imagens que se desmultiplicam como um caleidoscópio. O mundo é uma miríade de identidades em permanente sufrágio. Quanto mais somos pessoas mais nos tornamos pessoas! É por isso que um mundo encalhado na imagem alimenta o discurso do ódio. Porque não dá a ilusão que as pequenas diferenças que reclamamos para nós nos dão mais legitimidade para sermos quem somos. E para reivindicar o direito de sermos sempre um bocadinho mais que os outros.

Por mais que pareça, a identidade não é um promontório. E não é um planalto. É um caminho. E, de certa forma, uma oração. É, talvez melhor, uma peregrinação. Onde tudo começa no “quem sou eu?”. Depois da escolha. E no reconhecimento que muitas das nossas escolhas resultaram da forma como as coisas nos “escolheram” a nós. Não permitindo que uma imagem que componhamos esconda quem não somos. Para que possamos ir ao encontro da pequenez. E do desejo. Até que esse caminho termine no próximo “quem sou eu?”. E tudo recomece outra vez,