Um deputado pode ter uma arma de fogo nas instalações da Assembleia da República (AR)? Aparentemente pode, de acordo com o Estatuto do Deputado (ED) que lhe dá esse direito nos termos do regime jurídico das armas e munições. Uma deputada, ou um deputado, pode fazer topless no plenário, como o fez Cicciolina na galeria da AR em 1987? Aparentemente não pois isso viola um dos seus deveres (ED) que é o de respeitar a dignidade da Assembleia da República e dos seus colegas deputados. Vem isto, claro, a propósito do comportamento dos deputados do Chega aquando da visita de Lula da Silva à Assembleia da República. Esta visita, antecipando-se aquele tipo de comportamentos de deputados, com cartazes como se estivessem numa manifestação, não deveria ter acontecido naquele dia. Iria ensombrar, como ensombrou, aquilo que deveria e merecia ser um dia bonito: o dos festejos do 25 de Abril. Porém, qualquer que fosse o dia, a ausência de respeito por um chefe de estado estrangeiro nosso convidado iria verificar-se.

A Assembleia da República é o lugar simbólico por excelência da democracia portuguesa e por isso este incidente é relevante e merece ser discutido. Parece-me evidente que o Estatuto do Deputado deve ser alterado. Não apenas por não fazer sentido que um deputado possa ter a possibilidade de porte de arma, como há cem anos. Na altura da 1ª República em que os anarquistas radicais pululavam e se eliminavam adversários políticos a tiro, talvez se justificasse. Hoje não. Em contrapartida, e visto que há já deputados que não percebem o que é a dignidade da Assembleia da República é preciso densificar esse conceito, quer aqui quer no código de conduta.

Curiosamente tem sido dominante, entre políticos e comentadores, uma teoria sobre a melhor forma de lidar com os desmandos do Chega, que é a de evitar a vitimização deste partido. É nessa linha que estão os que agora criticam Augusto Santos Silva de dizer que não se faz acompanhar dos  deputados do Chega em visitas suas a países e personalidades estrangeiras  com responsabilidades de Estado. Esta posição tem duas fraquezas essenciais. Primeira, é considerar que o aumento da votação deste partido tem algo a ver com a hipotética vitimização de que é alvo. Não tem, pois como já argumentei noutro artigo, o problema não é o Chega é a incapacidade que PS e PSD têm tido de implementarem reformas para responder aos problemas do país. A segunda é que não percebem o paradoxo da tolerância formulado por Karl Popper: “A tolerância ilimitada deve levar ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada até mesmo aos intolerantes, se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra o ataque violento dos intolerantes, então os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles.” Para os que criticam ASS de sancionar modestamente o Chega (é só uma viagem paga ao estrangeiros que passam a não usufruir esses deputados) apetece perguntar: convidaria para um restaurante uma pessoa que sabe que irá cuspir no chão do restaurante?

Aquilo que se passou no 25 de Abril, espero que tenha acordado a mente dos deputados sobre aquilo que há a fazer. Não é falinhas mansas, e paninhos quentes é ação legislativa e regulamentar. É, sem hesitações, garantir a dignidade da Assembleia da República, dentro e fora de portas. O deputado que mostrou que percebe o que se está a passar é Rui Tavares que foi direto ao assunto, referindo-se ao Chega sem o nomear: “Têm na rua cartazes nas quais misturam suspeitos de crimes e políticos comuns e nos quais insinuam mais ou menos veladamente, ou diria mais ou menos descaradamente a eliminação de adversários. Se um dia houver uma mão, mais ou menos transtornada que passe ao ato, eles negarão qualquer culpa, mas nós também teremos tido culpa que é de ter mantido o silêncio enquanto isto aconteceu.” Curiosamente este cartaz, a que aludiu Rui Tavares, está a escassos metros do edifício da AR que é património nacional. Já o referi no tempo de Ferro Rodrigues, sem sucesso, mas vou tentar ser mais claro desta vez. O artigo 4º da lei 97/88 diz claramente que é critério para licenciamento ou exercício de propaganda “não prejudicar a beleza ou o enquadramento de monumentos nacionais”. É meu entendimento desta lei que não devia haver nenhum tipo de propaganda política a escassos metros da AR. Não vejo o Bundestag em Berlim ou as Houses of Parliament em Londres, com semelhante propaganda política à porta. É certo que quando Carlos Moedas deu um prazo de dez dias, para se retirarem os cartazes de propaganda do Marquês de Pombal, algo que me pareceu da mais salutar razoabilidade ambiental e política, logo vozes se apressaram a questionar a legalidade da medida. Salvaguardadas as diferenças entre património nacional e municipal, se for necessário clarificar o âmbito e conteúdo da lei que o seja. Uma coisa é certa, ou a lei já não o permite e deve ser aplicada, ou permite e nesse caso deve ser melhorada.

A Assembleia da República não é, nem pode tornar-se a rua. As manifestações de rua fazem-se na rua. Sim, há quem não perceba isto. Mas neste caso, há variados instrumentos, legislativos e regulamentares a aperfeiçoar e há competências, em particular do Presidente da Assembleia da República que devem ser exercidas com rigor. Uma democracia que não faz respeitar os seus valores e as suas instituições é uma democracia fraca, e esta só pode acabar mal.

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