Há certas questões que, por razões várias, não podem ser discutidas como as questões políticas, mas que são normalmente discutidas como as questões políticas. Chamemos-lhes questões de vida e de morte, como são as do aborto e da eutanásia.
Devo desde já dizer que, pessoalmente, sou a favor da escolha dos indivíduos num caso como no outro. Não interessa aqui dar razões para isso, nem falar das condições necessárias – sempre problemáticas, de resto – para que uma e outra coisa possam eventualmente ser legítimas. Em contrapartida, interessa-me perceber porque é que o modo habitual de discussão destes temas nos media e entre os políticos me parece inadequado, e, em muitos casos, pior, muito pior, do que isso. É só isto, permito-me insistir, que me interessa aqui.
A primeira razão é que estamos aqui face a situações em que a decisão é, entre todas, individual. Podia-me alargar muito sobre o que é, aqui, “individual”, mas não parece que valha a pena: num certo sentido, é óbvio para todos. E a discussão mediática e política, mesmo quando invoca a “liberdade individual”, recalca, pela sua própria natureza, esta dimensão.
A segunda razão, muito ligada à primeira, é que (como nas questões morais em geral) não nos encontramos aqui num estrito plano de racionalidade, qualquer que ela seja. Nem da racionalidade filosófica, nem da racionalidade religiosa. Há, é bom lembrar, uma racionalidade (como coisa distinta de um racionalismo) religiosa, de tipo distinto da racionalidade filosófica, fundada numa particular concepção do significado da vida, da qual a própria proibição dos métodos anticoncepcionais faz parte. Não sou competente em matéria de racionalidade religiosa, embora perceba, creio, a coerência interna que decorre dessa tal concepção do significado da vida. Mas possuo algum entendimento da racionalidade filosófica. E isso permite-me, por exemplo, estar de acordo em muitos casos (não em todos, como o dos “direitos dos animais”) com os argumentos sustentados pelo filósofo Pedro Galvão num óptimo pequeno livro, Ética com razões, publicado no ano passado pela Fundação José Manuel dos Santos, onde vários debates contemporâneos são revisitados e uma posição pessoal é adoptada.
Mas a racionalidade filosófica, aí é que está o problema, responde apenas a uma parte das dificuldades colocadas pelas questões da vida e da morte. A racionalidade filosófica, tal como a racionalidade religiosa, deixa muito de fora. Não é, note-se, que a uma e outra falte consistência. O problema é exactamente o inverso: o defeito é um excesso de consistência, de coerência, em domínios em que a atenção ao individual exige, pela lógica das coisas, alguma inconsistência.
A coerência pode ser um perigo em matérias éticas, tal como em matérias políticas, e é-o certamente quando ajuizamos sobre situações que implicam decisões existenciais que, por definição, extravasam o domínio do social. O que choca, justamente, nos grandes pronunciamentos ético-políticos sobre estas questões é a desatenção ao indivíduo, como se, e isso vale para ambos os campos, o indivíduo pertencesse por inteiro à comunidade, concebida por cada campo de diferentes maneiras, mas em ambos os casos como instância tutelar do comportamento individual. Dir-se-á que isto vale para aqueles que se opõem ao aborto ou à eutanásia, ou a ambos simultaneamente, mas não a quem defende a “liberdade de escolha”. Tenho sérias dúvidas no capítulo. A maioria das pessoas que defendem publicamente – deveria dizer: politicamente – o aborto ou a eutanásia fazem-no como se de artigos de religião cívica se tratasse. O indivíduo está mais ali como um argumento do que como um sujeito. Poderia dar muitos exemplos em que isto é transparente.
E há muitas outras coisas que se esquecem nas coerências éticas. A história, por exemplo, o modo como os diversos tempos moldam as nossas crenças, ao modo de quase as tornarem falsamente óbvias. Ou o facto de em questões éticas – e, já agora, em questões relativas a projectos políticos – não haver verdadeiramente provas, nem evidência alguma, mas apenas argumentos. Melhores ou piores, é certo. Mas mesmo um muito bom argumento não vale como uma prova. E isso é sumamente válido, repito, no que respeita às decisões últimas existenciais, que será sempre abusivo considerar como tuteláveis, a partir de certo ponto, pela sociedade. Como o aborto, a eutanásia, e, permito-me acrescentar, o suicídio puro e simples.
Como disse no princípio, é a forma dos debates públicos, o modo do seu recalcamento do individual, e não a essência da coisa, que me interessa aqui. Há, no entanto, uma questão parente, menos controversa, que permite menos reservas: a dos chamados cuidados paliativos e do imperativo de minimização da dor. Da minimização da dor ditada pela boa simpatia entre os humanos, sem preconceitos cruéis, é a boa palavra, como o do médico (contaram-me esta história há muito) que era particularmente parcimonioso na administração de morfina a um doente com um cancro em estado terminal, não fosse ele viciar-se. O ridículo é muitas vezes a antecâmara do grotesco, e o grotesco a porta de entrada na crueldade. Admito que haja quem voluntariamente, por convicção religiosa ou outra, prefira a experiência da dor. Deve ser, é claro, respeitado. Mas o imperativo da minimização da dor, nos confins da eutanásia, parece-me algo sobre o qual, desde que respeite a liberdade individual, todos deveríamos estar de acordo. O acto de sair da comunidade humana não pode ser um acto proprietário da sociedade, à qual devemos, é verdade, para o bem e para o mal, tudo o que se passa no intervalo entre o nascimento e a morte.
Vai isto – isto: a proximidade da eutanásia – contra a tradição cristã, de que mesmo um ateu é devedor, e muito devedor? É possível. Dei por título a este artigo: “Questões de vida e de morte”. Poderia, e se calhar devia, ter-lhe chamado: “A favor da inconsistência em ética”.